Uma aula de Luxemburgo sobre defender “à brasileira”
Quis o juiz que o principal personagem do duelo entre Vasco e São Paulo fosse o VAR e a expulsão de Raniel. Mas o exagero de Daronco não foi o suficiente para esquecer os trinta minutos perfeitos do Vasco com igualdade em campo Foram sete finalizações! Ou o domínio com um a mais, com dois gols construídos lá de trás e apenas três chutes concedidos ao São Paulo.
É preciso não esquecer de Vanderlei Luxemburgo. Fundamental na história do futebol brasileiro, ele anda em baixa, mas sempre teve conteúdo. Dessa vez, mostrou como a marcação à brasileira, com os chamados encaixes setorizados, pode ser eficiente contra times tecnicamente melhores se bem aplicada.
“Isso é bem Brasil. Nós somos assim. O Raul preencheu o lado direito, fazendo o corredor com o Andrey. Mantive o 4-1-4-1 com dois meias que pisam a área. Mesma coisa com o Henrique: o Antony é muito habilidoso e canhoto, então se puxasse para dentro, poderia levar o Henrique na falta”.
Encaixes fazem o adversário não criar
O que chamamos “encaixes” tem vários nomes. Na rua é o “cada um pega o seu”, ou também “marcação por setores”. O que importa é sempre a engrenagem, o movimento dos jogadores. A ideia é sempre anular o adversário. Não deixar ele criar. São diversas ações individuais sempre impedindo o avanço do outro lado. Exemplo: o Vasco começa num 4-1-4-1 e dá campo aos zagueiros do São Paulo. Veja que Marrony até encurta o espaço, mas todo mundo à frente da bola está bem marcado. Bem encaixadinho, sem opções.
Cada jogador tem um setor que deve “cuidar”
Esse tipo de marcação divide o campo em “setores”. Cada setor é de responsabilidade de um jogador, que deve atuar em qualquer adversário que caia por lá. Caiu no setor? Não pode deixar jogar! É responsabilidade ir até o fim e dar o máximo de si para isso acontecer. Exemplo: aqui o Vasco vai avançar e dá pra ver todo mundo acompanhando quem caiu no setor: Talles Magno com Juanfran, Andrey com Tchê Tchê e Marcos Júnior com Liziero.
Se você observar bem, vai ver que o 4-1-4-1 se desmancha aqui. Olha como Marcos Júnior está avançado. Ele faz isso para acompanhar o jogador em seu setor. Henrique também. Ele é lateral, portando um defensor, mas está quase no ataque para perseguir Antony e não deixar ele receber a bola. Por isso dizemos que o time “encaixa” no rival.
Pressão deve ser feita quando os mais inteligentes pegam na bola
No encaixe, o time só tenta roubar a bola quando os jogadores mais técnicos do outro lado jogam. Por isso é tão comum ver zagueiros ou o volantão livre, mas um meia mais cerebral sempre marcado. Na tentativa de fazer o São Paulo criar mais, Daniel Alves recua e vem buscar a bola, mas o time inteiro vigia essa movimentação. Dani está no setor de quem? Marrony! Então ele vem e encaixa. Andrey e Marcos Júnior fazem o mesmo, e Richard, o primeiro volante, persegue Antony.
O intuito dessa “bagunça organizada” é evitar que o adversário tenha opções livres de passe. Tão importante quanto encaixar a marcação é encaixar quem está próximo. E vem daí a principal crítica a esse tipo: o time age de acordo com o adversário, então se desorganiza todo. Se não tem um plano do que fazer quando recupera a bola, raramente vai conseguir encaixar um contra-ataque.
O típico camisa 5 e a importância das coberturas
O volantão marcador e pegador é uma instituição do futebol brasileiro. Todos os times que fazem sucesso tem essa figura, de Andrade a Felipe Melo, passando por Mauro Silva e Gilberto Silva. Sabe por que o camisa 5 é tão comum aqui? Porque ele é quem dá equilíbrio aos encaixes, funcionando como cobertura no setor onde está a bola e espanando jogadas que poderiam ser de perigo.
No Vasco essa peça atende pelo nome de Richard. Ele é o “1” do sistema e sempre está perto da marcação. Quando alguém avança muito, ele fica perto do buraco que se abriu, como aqui: está protegendo o lateral. Se algo der errado, ele está pronto para intervir, matar essa jogada e não deixar os zagueiros saírem do lugar. O encaixe tenta sempre proteger a zaga.
O drible é considerado essencial no Brasil porque ele quebra os encaixes. Um drible no jogador que veio pressionar bagunça todo o sistema e tira os zagueiros do lugar. Mas um drible numa marcação por zona não gera o mesmo efeito. Tudo está interligado!
Maracanazzo e Carioca de 1951: a origem dos encaixes
A marcação por encaixes é uma invenção brasileira. Ela se dá na derrota para o Uruguai na Copa de 1950. O WM do técnico Flávio Costa tinha marcação individual, com Bigode junto de Gigghia, Juvenal de Miguez e Augusto de Moran. Segundo relatos, os dois gols nasceram de falhas individuais - na marcação homem a homem, um jogador tecnicamente superior tem mais chances de vencer o defensor. Era preciso tornar o Brasil mais seguro para enfrentar os europeus.
Quem melhor defendia no Brasil era o Fluminense treinado por Zezé Moreira. Ele foi campeão carioca em 1951 com diversas novidades táticas. A primeira delas era o posicionamento dos três zagueiros: eles marcavam o espaço e não mais o jogador. Vítor e Edson, os médios, tinham que dar o primeiro combate. Basicamente, encaixar no adversário. A imprensa chamou esse sistema de “marcação por zona”, e, em movimento comum até hoje, taxa o Fluminense de defensivo. Era o "timinho" que levara apenas 25 gols, recorde na época.
A CBD acompanhava as inovações de Zezé Moreira e o chamou para treinar a Seleção na Copa de 1954. Com a marcação por zona, que viraria encaixes, o Brasil fez jogo duro para a Hungria, Zezé treinaria diversos times, assim como seu irmão, Ayrton Moreira, que seria campeão da Copa em 62. Juntos eles influenciaram diversos jogadores. Dois deles são especiais. Um era o ponta-esquerdo do Flu de 1951, que no sistema por zona, ajudava Didi voltando até o meio-campo. Inspirado pelo movimento do companheiro, o ponta do Flamengo fazia o mesmo e convenceria o técnico Fleitas Solich a adotar a tal da marcação por zona no Flamengo.
O nome desses pontas? Telê Santana e Zagallo. Os dois grandes mentores de Luxemburgo.
Fonte: Blog Painel Tático-geMais lidas
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