Futebol

Ricardo Gomes se diz contrário à "cera" no futebol

Desde que Pelé apareceu para o mundo da bola, no fim dos anos 50, o futebol brasileiro é associado a uma arte esculpida pelos pés. E o fato de a nossa Seleção ser a maior vencedora de Copas do Mundo também reforça essa impressão. Porém, não é só beleza que se vê na passarela do Campeonato Brasileiro. A cera, sinônimo de antijogo no jargão futebolístico, se faz presente em grande quantidade nos confrontos da Série A. Numa pesquisa com enfoque nas três últimas rodadas (14, 15 e 16), foi constatado que das 69 vezes que um jogador recebeu atendimento, com auxílio do médico e/ou necessidade da entrada do carro-maca, sua equipe estava vencendo ou, no mínimo, empatando em 64 oportunidades (92%).

Ao todo, nas três rodadas citadas, houve 28 paralisações de jogo por conta de lesões, sejam elas forjadas ou não, em situações em que não houve a necessidade da entrada da maca. Curiosamente, atletas de times que estavam em desvantagem no marcador não precisaram de atendimento médico simples. Afinal, eles corriam contra o tempo para buscar o resultado.

Atleta mais faltoso do Campeonato Brasileiro até o momento, o volante Willians, do Flamengo, não esconde que a cera é parte integrante do futebol competitivo. O interesse pelo resultado positivo ganha prioridade em relação à qualidade do espetáculo, e já não há mais melindre que impeça um jogador de admitir esse tipo de conduta em campo. Certas vezes, a ordem vem de cima.

- A cera faz parte do jogo. Às vezes, o time está ganhando por 1 a 0 no segundo tempo, um placar apertado, e segura o tempo da forma que é possível para evitar contra-ataques. Alguns técnicos, numa situação de sufoco, realmente orientam para que o time pare o jogo. Isso acontece no futebol brasileiro - declarou o camisa 8, que já cometeu 46 infrações no campeonato.

Os técnicos realmente têm a sua parcela de responsabilidade quando o assunto é cera. Na 15ª rodada, por exemplo, Jorginho estava pronto para fazer duas mexidas de uma só vez no Figueirense diante do Atlético-MG. No entanto, preferiu efetuá-las em momentos diferentes, causando duas paralisações e sem burlar as leis do jogo, vencido por 2 a 1 pela equipe catarinense.

Outro dado marcante é a quantidade de vezes que o carro-maca foi solicitado. Foram 41 oportunidades em 30 partidas. Campeão da Libertadores, o Santos usou esse expediente três vezes nos 45 minutos finais da partida contra o Ceará, quando já vencia por 1 a 0. Na primeira etapa, com 0 a 0 no placar, um jogador do Ceará saiu no carro-maca.

Conhecido pelo estilo clássico de seus tempos de zagueiro, o técnico Ricardo Gomes, do Vasco, afirmou ser contra qualquer artifício que contrarie as regras do esporte. Além disso, acredita na possibilidade de o feitiço voltar contra o próprio feiticeiro:

- Cera produtiva é ficar com a bola, gastar tempo. Aí, sim, eu concordo e aprovo. Porém, essa de cair esperando atendimento, goleiro que não repõe a bola, eu não concordo. Gasta dez segundos, e o árbitro dá um minuto (de acréscimo). É negativo para quem faz a cera, não vale a pena.

Jornalista inglês: \"Isso é um roubo\"


Correspondente da BBC na América do Sul, o inglês Tim Vickery encara com certa indignação o uso da cera pelo jogador brasileiro sempre que o resultado lhe é favorável. O jornalista vai mais além e acha que o famoso \"jeitinho brasileiro\" de querer levar vantagem em tudo influencia também o nosso futebol.

- Uma coisa que eu detesto é a maneira com que os técnicos usam as substituições. O jogador que vai sair cai no chão. Isso é uma situação treinada e é aceita no futebol brasileiro. Mas fere totalmente o fair-play. O que se adora aqui é a malandragem, bancar o esperto. É visto como um triunfo na sociedade brasileira e se reflete no futebol. Na Inglaterra não existe isso. O número de jogadores que cavam falta aqui é enorme. Quem faz isso lá é mal visto pela própria torcida. Eu gostaria de ver o fim desse tipo de substituição forjada. Para mim, isso é um roubo - frisou Tim.

O meia Juninho Pernambucano, que passou nove anos no futebol francês (no Lyon) e depois mais dois no Qatar (no Al Gharafa), ficou indignado depois que o goleiro Marcelo Lomba, do Bahia, foi ao gramado pela terceira vez para pedir atendimento médico quando o seu time vencia o Vasco por 1 a 0 em São Januário, pela 12ª rodada. Cuspiu marimbondos em direção ao árbitro, que então esperou o goleiro levantar e mostrou cartão amarelo (veja o vídeo abaixo). Nos acréscimos, o Vasco empatou o jogo.

Para o volante da Seleção Brasileira Lucas Leiva, que atua no Liverpool e começou carreira no Grêmio, o hábito de ludibriar a arbitragem no Brasil passa pela cultura do futebol no país. Ele garante não ter tido problema de adaptação ao chegar à Inglaterra por conta desse tipo de característica.

- É uma questão cultural. Os jogadores brasileiros e sul-americanos têm essa postura por natureza. De tanto viver situações como essa, você cresce achando normal. A diferença na Inglaterra é que qualquer tipo de atitude que vise levar vantagem fora das regras do jogo é completamente desaprovada. Eles prezam muito pela ética no esporte. Se for para ganhar, que seja de forma limpa. Não vou dizer que nunca fiz cera na carreira, mas eu nunca fui jogador catimbeiro, de segurar o jogo e cair à toa - declarou Lucas, que participou em 2005 da Batalha dos Aflitos, como ficou conhecida a partida em que o Grêmio bateu o Náutico por 1 a 0 e sagrou-se campeão da Série B.

Lucas admite que o time gaúcho recorreu ao antijogo na ocasião, mas acha que foi uma partida \"fora do comum\".

- O jogo teve que ser da forma que foi pelas circunstâncias. Qualquer tempo que pudéssemos ganhar era válido depois do momento que o Anderson fez o gol. Foi um jogo completamente fora do comum.

Wright  pede reeducação no futebol nacional

Ex-árbitro e hoje comentarista da TV Globo, José Roberto Wright diz que o futebol brasileiro tem de passar por um processo de reeducação. Segundo ele, as táticas de antijogo ficaram ultrapassadas com a modernidade do espetáculo, cercado de câmeras vigilantes. Com isso, a arbitragem tem de ficar mais atenta para não ser surpreendida pelos espertinhos.

Wright se lembrou até de uma \"doce vingança\" que teve de fazer com o ex-zagueiro Edinho em um confronto entre Flamengo e Vasco. Ao ver que o jogador simulara uma lesão, providenciou uma espécie de punição imediata.

- No Brasil, é muito difícil lidar com a cera. O jogador é atingido na barriga e coloca a mão no rosto. O árbitro não é médico para diagnosticar e só pode aplicar o cartão se tiver a certeza de que está sendo enganado. Você nunca vê um jogador do time que está perdendo cair no chão. Lembro uma vez que o Edinho simulou uma lesão e saiu. Levantou logo que deixou o campo, e fiquei uns quatro minutos sem olhar para lá. E ele louco para entrar. Ficou uns quatro minutos de castigo - declarou Wright, divertindo-se ao falar da situação inusitada.

Os árbitros do Brasileirão, no entanto, tem a sua parcela de conivência com a cera. Em 23 das 30 partidas analisadas, os acréscimos foram de três ou quatro minutos no segundo tempo, independentemente do número de atendimentos médicos e substituições. Apenas no jogo Cruzeiro 0 x 1 Flamengo, que teve Paulo César Oliveira na arbitragem, foram dados seis minutos a mais.

Um caso raro aconteceu na final do primeiro turno do Gauchão deste ano, quando o árbitro Márcio Chagas da Silva acrescentou oito minutos. O Caxias, que vencia por 2 a 1 aos 45 da etapa final, buscou paralisar o jogo a todo momento. Um exemplo disso foi que seus três atletas substituídos caíram pedindo atendimento médico antes de deixarem o campo. Aos 50 minutos, o time da capital empatou, levou a decisão para os pênaltis e venceu. Chagas foi elogiado pelo ex-árbitro Leonardo Gaciba por sua decisão.

Fonte: ge