Quando a plateia é o maior espetáculo
Separados por 97 anos, o primeiro e o último título vascaínos estão unidos pela dignidade.
Com um time de operários e negros, o clube venceu rivais e o preconceito ao conquistar a Segunda Divisão em 1922 e a Primeira no ano seguinte.
Obrigado a afastar 12 jogadores para permanecer numa associação branca e britânica, o Vasco preferiu proteger aqueles que defendiam suas cores e se exilou numa liga dissidente.
Sempre que se afastou da elite esportiva, o pêndulo da história fez o sentimento ressurgir mais forte. O mutirão de solidariedade e orgulho que construiu o maior estádio do país em 1927 foi o mesmo que levou o time atual ao título da Série B do Brasileiro.
Nas arquibancadas do Maracanã, de São Januário ou de qualquer estádio onde o time e a paixão estiveram, todos os gritos se uniram numa declaração de princípios. Sob desconfiança, o Vasco se agiganta.
Na corrente de amor e fé, os tambores soaram no ritmo de conquistas do passado e da esperança para o futuro. Jamais houve silêncio e indiferença.
Quando as músicas antigas cessavam, lá estava a trilha sonora da reconstrução, repetida como um mantra por uma ordem unida e solidária: Olê, olê, olê, olá/A cada dia, te quero mais/Sou vascaíno/E o sentimento/Não pode parar.
Desde a estreia, drama dá lugar a uma grande festa
Enquanto há vida, o sentimento não para. Transforma-se.
Da raiva e da vergonha pela queda, vieram a generosidade e o entusiasmo. Embora a qualidade do futebol exibido seja questionável como a saúde financeira do clube, o patrimônio cultural vascaíno nunca esteve tão valorizado. Mais do que time ou seus dirigentes, foi o público quem teve atuações antológicas, desde a estreia com vitória de 1 a 0 sobre o Brasiliense diante de 13.606 pagantes, dia 9 de maio, em São Januário.
Naquela tarde de sábado, quando o time ainda criava anticorpos para a Série B, a torcida já dava sinal de saúde ao fazer de seu maior drama uma grande festa: Ih, para a Primeira eu vou subir/E da Segunda eu vou passar/Na alegria ou na tristeza/ Eu nunca vou te abandonar. Estampada numa faixa, a promessa de estar sempre do seu lado foi cumprida com louvor junto.
Até o último dia 7, quando garantiu a classificação antecipada, com vitória por 2 a 1 sobre o Juventude e quebra de recorde de público nas quatro divisões do Brasileiro na temporada, diante de 76.211 pagantes no Maracanã, o Vasco foi seguido por 405.909 pagantes nos 17 jogos que fez como mandante, com média de 23.877 por partida. Mesmo limitado pelos 18 mil lugares de São Januário, onde atuou 13 vezes, o time teria o quarto maior público entre os participantes da Série A.
Sempre que as expectativas transbordaram os limites de São Januário, a torcida do Vasco se mostrou gigantesca como o Maracanã, onde fez seis jogos como mandante. A primeira exibição ali, nos 4 a 0 sobre o Ipatinga, foi apoteótica não apenas por recuperar a liderança na última rodada do turno. Um dia depois do aniversário de 111 anos do clube, em 21 de agosto, o Vasco comemorava o renascimento de uma nação sem divisão.
Antes do êxtase, houve um certo vazio. Após a eliminação da Copa do Brasil, o ânimo e os números caíram num período em que acumulou oito empates seguidos, três foram por 0 x 0, em casa, diante de não mais do que 7 mil pagantes. O reencontro com as massas foi lento, gradual e irrestrito. Na primeira vitória depois da ressaca, por 3 a 0 sobre a Ponte Preta, em São Januário, foram 12.256 pagantes. Na rodada seguinte, o time jogou para seu maior público em casa (17.360) e repetiu o placar, dessa vez sobre o ABC. Diante dos tumultos registrados nos 3 a 0 sobre o Campinense, a distância entre São Januário e o Maracanã ficou menor do que os poucos quilômetros que separam um estádio do outro.
Se, no primeiro turno, o Vasco fez nove de dez jogos como mandante em São Januário; no segundo, o Maracanã se impôs como o grande palco, onde disputou cinco dos oitos jogos até o título. Naquele que valia a liderança, na vitória por 1 a 0 sobre o Guarani, em 19 de setembro, a presença do boneco Shrek nas arquibancadas indicava que o monstro da Série B já não era tão feio assim.
Vestido com a camisa do Vasco, encarnava o triunfo da ternura sobre a monstruosidade
Heróis anônimos vestem a camisa como fantasia
Desde então, nas poucas vezes em que voltou para casa, houve certa implicância, natural numa família grande e plural como a vascaína. Seja por motivações políticas ou esportivas, parte das sociais ensaiou protestos no período em que o time ficou três jogos sem vencer, a começar pela derrota para o Figueirense, por 2 a 1, em 29 de setembro. Antes do jejum, foi o gelo que se quebrou com as declarações do técnico Dorival Júnior pedindo que os ansiosos ficassem em casa. Mesmo suspenso e com o filho recém-nascido, o capitão Carlos Alberto veio se juntar à festa daquela sexta-feira em que o Vasco se reconciliou com São Januário, nos 4 a 1 sobre o Vila Nova.
No jogo seguinte, a torcida mandou a cautela e a matemática para o espaço e celebrou a volta à Série A nos 2 a 1 sobre o Bahia, no Maracanã.
Moralmente, a missão estava cumprida. Junto com o time, estavam de volta personagens de outras conquistas, como o Mister M. Na rede de afeto, até o Homem Aranha se agarrou ao bom momento para aparecer na TV, embora os heróis de verdade fossem anônimos e vestissem apenas a camisa do Vasco como fantasia.
Junto com os tambores que marcaram o ritmo do sentimento, a massa declarou seu amor pelo clube em todos os gêneros. Do rock do Los Hermanos, em que a musa Ana Júlia se transformou em Vasco da Gama, ao samba-enredo do centenário, o povo cantou, a rede balançou e o clube se reafirmou com um grande campeão de terra e mar. Cantada pela paixão de sua torcida, a história desta temporada é uma volta ao começo, ao mutirão que construiu uma saga de heróis e conquistas, intermináveis como o sentimento de todos os vascaínos.
- SuperVasco