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Psicóloga do Vasco diz que escola no clube ajuda a impedir casos como o de B

O GLOBO: Como têm sido esses momentos em sua carreira, após esse trágico caso envolvendo o goleiro Bruno?

PAULO RIBEIRO: Em primeiro lugar, Bruno ainda não foi julgado, não foi condenado. Ele foi julgado pelo povo, é diferente.

Outro detalhe, que é preciso ser esclarecido, é que a ideia de que psicólogos de clubes têm de saber tudo que acontece na vida de um atleta é ilusão. Volto a dizer: o caso do Bruno não é representativo para o universo de jogadores que são formados no Brasil.

Não se pode botar todos no mesmo bolo. Eles vivem um mundo irreal, ganham título de ídolos sem saber se podem conviver com a idolatria. Se precisam tirar carteira de motorista, nem fazem a prova. Tudo de mão beijada. Convivem com uma relação adoecida com os clubes.

TERESA FRAGELLI: Muitos psicopatas fogem da ajuda. Pais e mães não têm culpa. A personalidade vem aflorando pela idolatria, eles se sentem com poder e se julgam acima do bem e do mal. Esse sentimento de poderoso cria um vale tudo para conquistar o poder.

Mas o comportamento de Bruno no dia a dia nunca sugeriu desvio de personalidade? Ninguém nunca notou isso ao longo desse anos?

PAULO RIBEIRO: A psicologia esportiva é totalmente diferente da psicoterapia. Uma coisa é uma pessoa procurar ajuda profissional. Outra é você correr atrás da história de um menino, um adolescente que chega num clube. E as histórias não são necessariamente boas. No caso de um jogador como Bruno, que chega a você já formado, adulto, é bem complexo. Na maioria das vezes, eles nem pedem aconselhamento e você nem sempre tem como se aproximar... Você pode em sã consciência culpar o Atlético-MG, onde ele se formou? Claro que não.

TERESA FRAGELLI: Pesquisas mostram que quatro entre 100 brasileiros têm ou podem desenvolver características de psicopatia. Ou seja: representam 4% da população do Brasil.

Todos desenvolvem? Não.

No futebol, o problema é que esbarramos nas dificuldades costumeiras: o atleta não aceita acompanhamento, o técnico não gosta de trabalhar com psicólogo e acha que pode, ele mesmo, conduzir um acompanhamento psicológico, não respaldando a função do psicólogo esportivo. É difícil porque a rejeição começa dentro de seu próprio ambiente...

MAIRA RUAS: O principal no futebol é a pessoa estar funcionando, tendo uma produção para a qual foi contratado. O psicológico está sempre ligado ao rendimento. Você não pode obrigar uma pessoa a conversar com outra, é uma questão de confiança. Ninguém é obrigado a entender o que é o trabalho psicológico.

Até onde esse caso do Bruno pode pôr em xeque a necessidade de um psicólogo trabalhando direto com os jogadores. Os que lidavam diariamente com ele ficam estigmatizados?

PAULO RIBEIRO: Sério, sem demagogia, esse caso do Bruno não é representativo em relação ao grande número de atletas que os clubes formam e são acompanhados por psicólogos.

Há jogadores de talento, com emocional em ordem, profissionais com noção de direitos e deveres. Não se pode generalizar, envolver o trabalho dos psicólogos num embrulho só, fazer tudo uma massa só. É um caso isolado.

Não se pode achar que filho de delegado não vende drogas porque é filho de autoridade.

TERESA FRAGELLI: O grande problema é que as famílias, a sociedade e os próprios clubes não impõem limites coletivos ou individuais. Estamos vendo gerações cada vez mais individualistas, narcisistas, sem responsabilidades.

MAIRA RUAS: O caso do Bruno é tipicamente funcional. Ele estava funcionando. Não tem nada de formação de caráter.

Ele estava fazendo sua função com sucesso e era valorizado por causa de seu bom desempenho e bons resultados

É comum o distanciamento entre psicólogos e jogadores? Como saber se o adolescente pode desenvolver uma personalidade agressiva,perigosa, psicopata?

TERESA FRAGELLI: Todos os psicólogos esportivos já se depararam com atletas que apresentam traços de psicopatia em sua personalidade. Por conta do sigilo isso não pode ser revelado, mas muitas vezes chamamos para um acompanhamento e até encaminhamos o mesmo para um tratamento fora da instituição. Na verdade, ninguém muda temperamento de ninguém.

PAULO RIBEIRO: Nossa maior preocupação é ajudar a promover uma melhoria de qualidade tanto na vida pessoal quanto na profissional de cada atleta, ajudando-os desde a infância.

Só que, hoje em dia, você quase não consegue acesso às famílias. Tudo é tratado com empresários, procuradores, agentes...

Então é mais complicada do que parece essa missão de fazer a cabeça dos jogadores?

MAIRA RUAS: O maior problema é a leitura que cada um faz dos objetivos. Nem sempre os objetivos do grupo são os principais para cada um. É como se fosse um balão japonês.

No primeiro instante, ele sobe, sobe, mas logo cai porque foi uma ascensão sem alicerces.

PAULO REIS: Eu procuro observar os treinos, falo com os jogadores dentro de campo, que é o local de trabalho deles.

Há sempre um detalhe que você percebe, se o menino está desatento, irritadiço, disperso.

É uma situação diferente quando o jogador te procura porque está com problema em casa, tipo separação, ou outro caso familiar. Isso é raro, mas quando acontece e é grave, às vezes a gente até aconselha o acompanhamento também de um advogado.

MARIA HELENA RODRIGUEZ: No Vasco, trabalhamos com mais duas psicólogas. Nos meus 24 anos de clubes, já vi muitas situações que a ética impede de relatar, mas a participação de outros segmentos dentro do clube é importante demais. No Vasco, temos a escola dentro de São Januário.

Isso ajuda demais. Há casos em que os alunos-jogadores da divisão de base saem dos treinos e vão deitar no alojamento.

A diretora da escola avisa aos assistentes sociais, que vão buscar os meninos nos quartos e os obrigam a ir para as salas de aula. Eles vão ganhando senso de responsabilidade.

Há uma solução porque há relação direta entre vários setores do clube.

Dar responsabilidades aos que se mostram desajustados ajuda a desenvolver senso de disciplina, facilita o convívio em grupo?

TERESA FRAGELLI: A decisão de escolher capitão, por exemplo, nem sempre é respaldada pelo grupo e os critérios usados nem sempre dizem respeito às características ideais que um líder de uma equipe precisa ter. Dirigentes e técnicos acreditam que, ao dar a braçadeira de capitão para um líder negativo, estão contribuindo para que o mesmo, com a responsabilidade de ser capitão, se transforme. Isso, muitas vezes, só exacerba o potencial de suas características negativas de personalidade, fazendo com que acreditem que estão acima do bem e do mal. O psicólogo fica impotente diante dessa situação.

MARIA HELENA RODRIGUEZ: O grande problema é que, às vezes, o capitão é escolhido por ser um líder negativo, aquele que não é o mais respeitado e sim o mais temido. A avaliação na escolha de um capitão é pela admiração que cada um desperta no grupo e não pela sua eficiência profissional.

Até onde o ambiente, a origem de cada um, influi na formação de uma personalidade desviada, complicada?

MAIRA RUAS: É incrível como às vezes o menino vem do fraldinha do futebol de salão e já ganha R$ 500, R$ 600, por mês.

Aos 14, 15 anos, os jogadores já têm um empresário que dirige a vida deles e os clubes ficam praticamente inacessíveis às famílias, você não tem como avaliar o que eles viveram na infância, na vida antes do futebol.

TERESA FRAGELLI: Um dos grande males é o paternalismo.

Os clubes têm de ser mais profissionais com os atletas, não permitindo certas coisas.

Os jogadores não podem crescer achando que são reizinhos.

Eles vivem num delírio, fora da realidade, num mundo à parte. Eu conto sempre a história de um jogador de futebol de salão do Fluminense que ilustra bem esse tipo de sentimento que os jogadores vivem.

Aos 18 anos, eles já são os chefes de famílias porque ganham mais do que todos.

Esse menino estava andando pela sede das Laranjeiras sem camisa. O porteiro, cumprindo sua obrigação, perguntou se ele não sabia que era proibido andar sem camisa pela sede social. A resposta dele foi surreal. O garoto perguntou para o porteiro: “Você ganha quanto?”. O funcionário não entendeu nada e o garoto completou, batendo no bolso: “Aposto que tenho aqui no meu bolso muito mais do que você ganha por mês”.

PAULO RIBEIRO: É muito complicado você resolver esse tipo de situação porque é preciso implantar um regime de responsabilidade, você tem que imprimir nos atletas desde cedo conceitos de respeito, autoestima, cidadania. Afinal, não estamos formando apenas jogadores. Se a carreira não der certo, e eu falo isso sempre para eles, como vai ser? Eles precisam ter uma atividade, uma profissão alternativa.

E, sem esses conceitos de limite, cidadania, respeito, não vão conseguir nada na vida.

MAIRA RUAS: O quadro é bem conhecido e cria discrepâncias sociais. De vida pobre, em que a dificuldade era imensa, aos 18 anos eles se tornam autoridades na família, no seu círculo social. É uma inversão de valores total. Esses conceitos de sucesso, de realização profissional, são subjetivos, nada é concreto. E isso vai criando uma ilusão.

MARIA HELENA RODRIGUEZ: Acho que fundamental nessa estrutura que os clubes montam para dar suporte aos jogadores que vêm das divisões de base é a adoção de psicologia social, ajudando na área da psicologia esportiva. O trabalho seria desenvolvido com muito mais eficiência.

MAIRA RUAS: Para um tratamento apresentar uma resposta positiva é preciso persistência e leva de três a quatro meses para você observar mudanças de comportamento.

É um trabalho contínuo, de motivação, cujo rendimento evolutivo é como a preparação física. Não acontece de repente, e carece de aprimoramento constante.

Nessa relação no aprimoramento psicológico, já foi falado, a confiança é muito importante, decisiva.

O quadro é tão antigo, os problemas de ascensão rápida e deslumbramento se repetem a cada ano. Pelo visto não há solução, nem histórias alegres nessa relação psicólogo, jogador e sucesso profissional? É sofrimento sem perspectivas?

PAULO RIBEIRO: Não, nada disso.

Há momentos em que a gente se sente recompensado.

Outro dia, por exemplo, o Marcelo Lomba veio e me surpreendeu ao me dar a camisa de goleiro em seu primeiro jogo como titular. Eu disse a ele que agradecia a gentileza, o carinho, mas não era necessário.

Eu achava que ele deveria guardar a camisa como troféu.

Mas ele fez questão de dizer: “Não senhor, você me deu muita força e merece. Quero que você fique com o presente...”.

Isso te anima a prosseguir.

A gente costuma dizer que psicólogo trabalha por trás do espetáculo. Mas episódios como este mostram que a gente tem uma missão muito nobre pela frente.

TERESA FRAGELLI: Na minha época de Fluminense, onde trabalhei durante dez anos, também vivi uma experiência diferente da rotina da nossa profissão. Normalmente, mães de pequenos astros são veneradas por eles e conseguem encontrar argumentos para todos os problemas que eles arrumam.

Eles são sempre certos, intocáveis. Uma das exceções que eu conheci foi a Maria, mãe do Toró. Quando o Toró aprontava alguma, a gente chamava a Maria. Uma vez, ele estava impossível e a chamamos.

Em vez de passar a mão na cabeça dele, a Maria deu uma bronca na frente de todo mundo. Ele ainda estava no mirim, essa fase é braba.

PAULO RIBEIRO: Também tive uma história gratificante com o Andrezinho, que está no Internacional.

Ele começou muito cedo no Flamengo e era muito tímido. A família morava em Campinas e em seus primeiros tempos na Gávea chorava demais. Mas o menino chorava muito. Eu comecei a me aproximar dele levando-o para tomar um sorvete e foi assim que descobri que a nostalgia estava pondo em risco o futuro de um grande talento.

Tanto que ele fez sucesso no Flamengo, foi para a Coreia do Sul, onde era rei, e agora está se destacando no Internacional.

Sabe como conseguimos contornar esse problema? Conquistando a confiança dele.

Confiança nesse ramo é tudo.

Quando descobri o que ele sentia, sugeri que ele ficasse uns dias em casa com a família.

Assim foi feito e ele enfim se adaptou ao Flamengo.

Mas no meio dessas histórias e exemplos de que quase tudo está errado na formação de base, há jovens que têm responsabilidade.

Alguns sustentam mesmo as famílias e são profissionais...


TERESA FRAGELLI: O maior exemplo que tenho de uma situação assim é o Wellington Silva, que jogava no Fluminense, no time da Mangueira, no time de um banco, no da rua. É evidente que numa roda viva dessas algum lado vai sair prejudicado.

E percebi que havia uma certa insatisfação do preparador físico com ele. Não queria treinar, estava devagar demais. E, nas divisões de base, castigo para a garotada é correr mais, treinar mais, quando pisa na bola. E vi que ele estava com rendimento lá embaixo. Procurei o preparador, que me disse que estava castigando o Wellington. Perguntei se ele não poderia fingir que não percebia que o garoto estava treinando menos que os outros. Ele entendeu e tudo voltou ao normal. Teve um dia em que, num desses jogos, o time adversário não apareceu e o Fluminense venceu por W.O. O diretor de futebol amador então avisou: “Vamos lá pra casa porque vou fazer churrasco”. O garoto ficou todo entusiasmado, mas o pai lembrou que ele tinha jogo de tarde pela Mangueira. O menino implorou, suplicou, mas o pai foi irredutível: ele acabou não indo ao churrasco.

Com tantos obstáculos, há luz no fim do túnel?

PAULO RIBEIRO: Pesquisas mostram que, de 1994 para cá, o nível dos jogadores melhorou.

A maioria está próxima das famílias e estudando idiomas, procurando formação profissional.

TERESA FRAGELLI: Será? Isso para mim é pesquisa respondida por empresário..

Grupo em sintonia

MARIA HELENA RODRIGUEZ: há 24 anos no Vasco, é uma das mais experientes psicólogas de clubes. Em São Januário, tem a companhia de uma profissional e também de uma estagiária

PAULO RIBEIRO: no Flamengo há 24 anos, nem a turbulência que vem enfrentando após o caso Bruno abalou sua personalidade. Ribeiro trabalha com uma estagiária na Gávea.

MAIRA RUAS: psicóloga do Botafogo há sete anos, é a caçula do Time da Mente e trabalha com duas outras psicólogas

TERESA FRAGELLI : após dez anos de Fluminense, onde foi substituída pela filha Emily, agora trabalha nas divisões de base do Botafogo.

(Matéria reproduzida diretamente da versão papel do Jornal O Globo)

Fonte: Jornal O Globo