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Aos oito anos, Felipe Melo foi convidado para treinar no Vasco

No bairro onde nasceu, em Volta Redonda, era fácil ouvir à distância o assobio do pai, Seu José, chamando para encerrar a pelada e retornar para casa. Mas não foi tão simples ouvir o mesmo som no estádio do Arsenal, em Londres, no amistoso entre a seleção brasileira e a Itália, no início de 2009. Foi justamente nesta partida, com as lembranças da família na arquibancada e com lágrimas nos olhos durante o hino, que o volante Felipe Melo iniciou a sua trajetória no time comandado por Dunga. E ele estava realizando um sonho de infância.

- Quando o time entrou para aquecer, vi o meu pai em cima do banco de reservas da seleção. Quando começou o hino, ele estava chorando e tremendo, não conseguia tirar uma foto. Aquilo me emocionou bastante – revela Felipe Melo.

Dos primeiros passos na Cidade do Aço até o assobio na capital inglesa, muitas histórias e percalços passaram na vida do volante, atualmente no Juventus, da Itália. Aos 26 anos, Felipe Melo é o oitavo personagem de uma série de reportagens especiais do Jornal Nacional sobre os 23 convocados por Dunga para a África do Sul.

- Temos uma comunicação própria entre nós. Quando estou no estádio, assobio, e ele acaba sabendo onde estou. Ele localiza a família dessa maneira – conta Seu José.

Felipe Melo confirma o jeito de se comunicar da família e revela que o assobio passa de geração para geração.

Temos uma comunicação própria entre nós. Quando eu estou no estádio, eu assobio e ele acaba sabendo onde estou no estádio. Ele localiza a família dessa maneira\"

- Em Volta Redonda, meu pai me chamava para ir para casa, e eu fingia que não ouvia porque estava jogando futebol. A partir daí, ele criou o assobio. Do outro lado do bairro eu ouvia e ia correndo porque sabia que ele estava me chamando. Hoje eu chamo os meus filhos assim. É um assobio de família. Lá no meu bairro, no Parque das Ilhas, quando o pessoal escuta já sabe que o meu pai está chamando alguém.

Mas a vida de Felipe Melo, de Volta Redonda até Turim e depois para a seleção brasileira, não foi fácil. O garoto iniciou numa escolinha aos oito anos de idade. Em um amistoso contra o Vasco, na Cidade do Aço, ele chamou a atenção e foi chamado para treinar em São Januário. Porém, por achar o filho muito jovem, Seu José preferiu não aceitar o convite dos dirigentes cruzmaltinos.

No ano seguinte, mais velho, Felipe participou de outro amistoso. Desta vez, o adversário era o Flamengo. E o convite também apareceu. Sem pensar duas vezes, o pai liberou o garoto para ir à Gávea tentar a sorte.


- Lembro que cheguei com o meu avô na Gávea e fiquei sentado na arquibancada esperando para ver o que seria feito. Um diretor chegou para o pessoal federado e mandou retornar no dia seguinte para iniciar os treinos. Mas quem não era federado, o meu caso, só retornaria depois de três meses. Fiquei chateado, mas quando estava indo embora, o professor Luiz Carlos avisou ao pessoal do Flamengo: “Esse aqui é o Felipe de Volta Redonda. Ele fica”. Fui federado e iniciei a minha trajetória no Flamengo - relembrou.

Com o primeiro obstáculo ultrapassado, Felipe ainda teria outro caminho árduo para percorrer. A família do garoto morava em Volta Redonda, a 140 km do Rio de Janeiro. Seu José e Dona Silvana, mãe do volante, se desdobraram para conseguir conciliar o trabalho com a rotina de treinos no Flamengo, já que viajavam da Cidade do Aço para a capital todos os dias.

Funcionário da Companhia Siderúrgica Nacional, José foi obrigado a trocar de turno no trabalho para acompanhar Felipe Melo até o Rio. A alteração prejudicou até mesmo o crescimento dentro da CSN. Quando ele não podia seguir com o garoto para a Cidade Maravilhosa, Silvana tinha a missão de pegar um ônibus para levar o volante até a Gávea, na Zona Sul da cidade.

- Toda vez que deixava Volta Redonda, ele chorava porque não ficaria ao lado dos irmãos e dos coleguinhas. Às vezes, eu fazia o turno da noite, dormia um pouco e corria para levar o Felipe para a Gávea. Ele me dava comida na boca no trajeto. Eu descansava dentro de carro enquanto ele estava treinando. No juvenil, a situação piorou porque ele passou a treinar de manh㠖 disse José.

Felipe Melo conta como era a ida para o Rio de Janeiro. O jogador afirma que de carro o trajeto era menos doloroso. Porém, quando a mãe o levava de ônibus, os engarrafamentos perseguiram a rotina da família.

- Hoje, o pessoal ri disso tudo que passamos. Era um sofrimento, principalmente para uma criança. Eu tinha que dormir cedo, não podia brincar com os meus amigos na rua. A minha mãe me levava de ônibus quando o meu pai tinha de trabalhar. Pegava engarrafamento na Serra das Araras, na Linha Vermelha. Vejo tudo aquilo como um amadurecimento. Cresci mais rápido como profissional e como homem. Se ganhei o que ganhei, se cheguei onde cheguei, foi graças a esse sofrimento – relembrou o volante.

O jogador revelou ainda que passou por maus bocados com o pai durante o trajeto Volta Redonda-Rio de Janeiro. Tudo por conta do cansaço.

- O meu pai falava: “Estou com muito sono, fica de olho”. Uma vez, nós já estávamos perto da Gávea e vi o meu pai fechando os olhos algumas vezes. Eu dava um toque nele para não dormir. Talvez, a minha forma de comemorar apontando e olhando para o céu seja para agradecer todo esse sacrifício – disse.

Mas Felipe nem sempre foi rubro-negro de coração. O próprio jogador revelou que já usou a camisa do Fluminense em diversas oportunidades, principalmente por conta da paixão do pai.

- O meu pai é tricolor. Quando eu era criança, meu primeiro jogo foi um Fluminense e Goytacaz, nas Laranjeiras. Lembro que a gente pegou a barca Rio e Niterói, e o meu pai comprou uma camisa do Fluminense. Mas não teve jeito, com nove, dez anos, eu comecei a assistir aos jogos do Flamengo. Sou flamenguista, os meus irmãos são flamenguistas. Continuo torcedor e sou mais torcedor do que antes. O meu pai me cutuca no estádio e diz para eu manter a linha porque sou jogador profissional, mas fico torcendo mesmo – conta Felipe, que tem fotos ao lado de Júnior, Renato Gaúcho e Leonardo.

A vida do jogador não foi só de vitórias por conta do seu sucesso no futebol. Felipe Melo e a sua família também precisaram aprender a conviver com as críticas após a primeira convocação do jogador para a seleção brasileira. A mãe do jogador chegou a chorar com alguns comentários feitos sobre a atitude do volante em campo.

- Ninguém pode discriminar ninguém de maneira alguma. Chorei muito quando um comentarista o criticou e o chamou de \"songa-monga\". Foi para atingir o jogador. Mas essas são coisas que você precisa saber levar – disse Silvana.

Felipe afirma não ligar mais para as críticas.

O Jorginho e o Dunga deram a capa por mim. Não é qualquer comissão técnica, principalmente de uma seleção, que vai fazer isso por um jogador. Se eu não tivesse feito um bom jogo contra a Itália, as pessoas iam cair em cima de mim e deles também. Quando eu jogo pela seleção brasileira, eu jogo machucado, dou carrinho\"

- O que me dói bastante é quando eu vejo os meus pais tristes pelas críticas. Nunca fui um jogador que a imprensa passou a mão na cabeça. Grande parte da imprensa brasileira criticou a minha convocação, mas não vejo problema. Isso faz parte porque cada ser humano tem a sua maneira de analisar uma situação. Não temos que levar essas coisas para casa – garante.

O jogador ainda agradeceu a coragem de Dunga e do auxiliar Jorginho, que apostaram em sua convocação desde 2009.

- Quando falo do Jorginho, tenho de falar do Dunga. Nem gosto de falar muito sobre isso para que ninguém possa dizer que sou puxa-saco de treinador. Na verdade, os dois deram a cara por mim. Não é qualquer comissão técnica, principalmente de uma seleção, que vai fazer isso por um jogador. Se eu não tivesse feito um bom jogo contra a Itália, as pessoas iriam cair em cima de mim e deles também. Falariam que os dois estavam inventando jogador na seleção brasileira. Quando jogo pela seleção, dou carrinho, jogo machucado, tenho de correr. Claro que faço pela nação brasileira e por mim, mas pelos dois também.

Antes de chegar ao Flamengo e ao futebol europeu, Felipe treinou muito com o pai. Segundo José, o garoto pedia para trabalhar na quadra perto de casa para melhorar os fundamentos.

- Eu ficava rolando bola para ele chutar, tocando com força para ele ter um domínio melhor. Tinha gente que passava e dizia para eu deixar o garoto descansar – disse José.

- Às vezes, falava para o meu marido para deixar o Felipe descansar, mas não sabia que era o próprio Felipe que pedia para treinar. O José dava cada chute forte para ele. Eu ficava impressionada – contou Silvana.

Felipe Melo jamais reclamou do tratamento dado pelo pai.

- Se aquela quadra falasse, eu e o Nicolas (irmão) teríamos muita história para contar. O meu pai chutava a bola forte e gritava para dominarmos. No Parque das Ilhas, em Volta Redonda, muitas vezes o meu pai foi chamado de maluco. O pessoal dizia como ele fazia aquilo como uma criança. Tenho um bom domínio de bola graças a esse treino do meu pai. Ele me ajudou muito com isso – comentou o volante

Na infância, o garoto era agitado, não parava um minuto sequer. Segundo os pais, apenas o futebol e as pipas deixavam o menino mais calmo.

- Ele ficava chutando a bola o tempo todo. Falava com ele: “filho, pelo amor de Deus, para com esse barulho”. Ele até parava, mas logo em seguida voltava a chutar tudo de novo – contou Silvana, que a partir daí passou a canalizar a energia do filho para o futebol.

O volante admite que deu trabalho, mas agradece as surras dadas por José e Silvana durante a sua criação em Volta Redonda.

- Se eu tivesse que apanhar por toda a cagada que fazia, estaria com o corpo todo marcado. O meu pai passava a mão na minha cabeça. A educação que eles me deram, a disciplina, foi nota mil. Sou um ótimo pai de família, um homem respeitado, graças às \"coças\" que levei dos meus pais. Graças a Deus eu tive um pai e uma mãe que eram severos, mas que davam amor e carinho quando tinham que dar – relatou o jogador.

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Felipe Melo ao lado da esposa Roberta e dos filhos

Casado com Roberto e pai de Linyker, de seis anos, Davi, de quatro, e Pietra, de um, Felipe Melo diz que o primogênito ganhou o nome do ex-jogador da Inglaterra por conta de uma paixão do pai. Mas revelou também que a sua agitação não contagiou os filhos.

- Eles são tranquilos. Bem diferentes de quando eu era criança. Até hoje sou agitado. Quando chego em casa e está chovendo ou nevando, sempre procuro algo para fazer. Jogo sinuca, videogame – contou Felipe.

Os pais falaram da paixão do filho por Volta Redonda. Porém, os dois admitiram que a preferência de Felipe Melo é pelo Rio de Janeiro.

- Ele sempre fica um pouco aqui, mas depois viaja para o Rio, aluga apartamento. Sempre montamos uma pelada aqui nos fins de temporada. Assim como no ano passado, não vamos realizar a pelada por causa da Copa – disse o pai do volante, referindo-se também à Copa das Confederações.

Felipe não fica de olho apenas na seleção ou no Juventus. Mesmo distante, ele não deixa de marcar a irmã mais nova em cima. O volante revelou que ao lado do irmão Nicolas já fez um pretendente desistir do namoro.

- A minha irmã foi namorar um camarada de Volta Redonda, e eu estava na internet. O cara foi pedir a mão dela em namoro e chegou de bermuda e chinelo lá em casa. Lembro que o Nicolas pediu para ele colocar uma calça e um sapato. Sei que o cara nem voltou. Mas eu melhorei um pouco em relação a isso - brinca.

Felipe iniciou a carreira nos profissionais do Flamengo em 2001. Logo de cara, o jogador carimbou duas faixas de campeão. O volante venceu o Campeão Carioca e a Copa dos Campeões. Porém, no fim do ano, ele foi fundamental na campanha rubro-negra para fugir do rebaixamento à Série B. A três rodadas do fim da competição, ele marcou o gol da vitória por 1 a 0 sobre o Internacional, em Juiz de Fora. A partir dali, os dirigentes do clube carioca passaram a ver o atleta com outros olhos.

Em 2002, na desastrosa campanha do Flamengo na Libertadores, Felipe Melo foi o artilheiro da equipe, com quatro gols. No ano seguinte, foi emprestado ao Cruzeiro e fez parte de uma das equipes mais vitoriosa da Raposa. O volante conquistou a tríplice coroa (Mineiro, Copa do Brasil e Brasileirão) na equipe comandada por Vanderlei Luxemburgo.

Sem muitas oportunidades na Gávea, Felipe foi mais uma vez emprestado. Em 2004, defendeu o Grêmio. Mas foi apenas no ano seguinte que conseguiu se desvincular do Flamengo e se transferir para Espanha. A primeira experiência do volante na Europa foi no Mallorca. Em seguida, vestiu a camisa do Racing Santander, onde balançou a rede contra os galácticos do Real Madrid, e do Almeria.

- O Felipe sempre se deu bem contra o Real Madrid. Teve uma vez que ele me ligou e disse: “Pai, não fiz um gol nessa temporada”. Eu disse que era a chance de ele de finalmente marcar um gol. Foi aí que ele brincou e disse: “Nós vamos enfrentar o Real Madrid, e o nosso time está todo desfalcado”. Era o último jogo do ano, e ele fez o gol da vitória – lembra José, afirmando que filho homenageou a esposa que estava grávida levando o polegar à boca.

Do Almeria, Felipe Melo foi negociado com o Fiorentina em 2008. Os italianos pagaram € 13 milhões (cerca de R$ 29 milhões) para contar com o atleta, destaque do pequeno clube espanhol. E foi justamente na Viola que conseguiu a sua primeira convocação para a seleção brasileira, em 2009. Na estreia, contra a Itália, a boa atuação o credenciou a ser titular da equipe comandada por Dunga.

Logo após a competição, o Juventus investiu € 25 milhões (cerca de R$ 70 milhões) para ficar com o jogador. Com os altos e baixos da equipe de Turim na temporada 2009/2010, Felipe Melo não teve um bom desempenho. Mesmo assim, é um dos homens de confiança de Dunga para a Copa do Mundo da África do Sul.

Na seleção brasileira, Felipe Melo obteve 15 vitórias e apenas um empate. O primeiro jogo do volante pelo time canarinho foi na vitória por 2 a 0 sobre a Itália, em um amistoso, em Londres, no dia 10 de fevereiro de 2009. O primeiro gol saiu duas partidas depois, contra o Peru, pelas eliminatórias, no dia 1º de abril do mesmo ano.

- Eu era tão contestado quando fui convocado a primeira vez para a seleção. Hoje sou campeão, estou invicto. Os meus companheiros na seleção me ajudaram muito. Foi um nervosismo grande quando o Dunga comunicou que eu seria titular. O Robinho, o Adriano, o Ronaldinho, o Julio Baptista, todos me ajudaram muito – conta o jogador, que foi substituído apenas uma vez pelo técnico, justamente no amistoso contra Omã, no Qatar, no fim do ano passado.

Durante o Mundial, a família de Felipe vai acompanhar os jogos de Volta Redonda. Tudo para não preocupar o volante, que considera a África do Sul um país perigoso. Mas se depender do retrospecto do jogador, Seu José, Dona Silvana, os irmãos e o torcedor canarinho que assistirem à Copa vão ver mais um caneco na conta da seleção.

Fonte: ge