Relembre a trajetória de Clébson, jogador que foi vítima de acidente fatal
O auge —aquele auge mesmo— ainda não tinha chegado. Mas tudo parecia muito perto, se apertasse o olho já dava para enxergar. Não é todo jogador que sai do Bahia para o Vasco e num ano só acaba campeão nacional e continental. Clébson era o cara. Lateral-direito promissor, elogiado. Uma convocação à seleção, como já tinha acontecido com todo aquele time estrelado do Vasco, era uma realidade batendo na porta.
Quem já estava de olho era o Cruzeiro. O Palmeiras, também.
Foi numa folga da rotina do Vasco que Clébson decidiu viajar para a Bahia, sua terra natal. Voou para Salvador. Lá, pegou o carro para percorrer os 400 km que faltavam até Itiúba. Antes, ligou para a família e fez um pedido: que ninguém saísse de casa naquela sexta-feira, 22 de junho. Ele traria uma boa notícia, que ia mudar a vida de todo mundo.
Foi uma correria só para armar uma festinha de recepção a Clébson. Festinha, não. Uma festa junina tipicamente nordestina, com tudo o que tem direito. Dia de São João é 24, nada mais propício. Pula fogueira, iaiá.
Então, essa notícia nunca foi dada. A festa não aconteceu. Um acidente na estrada naquela noite matou Clébson aos 22 anos. Antes do auge, antes da notícia, antes da festa. Para Carmerinda, sua mãe, junho nunca mais foi mês de comemorar. É mês de reviver feridas, chorar o luto, encarar as dores e pensar na história que poderia ter sido, mas não foi. E também recordar o que foi.
Por razões diferentes, 19 anos depois desta tragédia, este junho também é um mês sem as tradicionais festas juninas —na Bahia ou em qualquer lugar. Antes, pela dor de uma família. Hoje, pela dor de quase 50 mil delas.
Ascensão precoce
O tetracampeão Jorginho queria migrar para o meio-campo. Caminho natural para um lateral depois dos 35. Então, o Vasco foi ao mercado e achou Clébson, ainda novinho, mas já bicampeão baiano pelo Bahia. Trocou três por um, empréstimo de um ano, em julho de 2000.
"Eu já estava como volante e depois da chegada do Clébson não precisei mais ser deslocado. Ele tomou conta daquela posição", lembra Jorginho.
"Era um jogador que tinha todas as valências, todas as virtudes para um lateral, com boa marcação, bom passe e cruzamento, excelente condicionamento físico também. Ele ultrapassava nos momentos certos e também conseguia jogar esse jogo apoiado, de toque curto, mas com passagens rápidas. Tecnicamente, muito qualificado."
Em um ano de Vasco, Clébson entrou em campo 55 vezes. E ganhou dois títulos: a Copa João Havelange (equivalente ao Campeonato Brasileiro em 2000) e a Copa Mercosul (a Copa Sul-Americana das décadas passadas). No torneio continental, foi titular em todos os jogos. E também fez dois gols na Libertadores de 2001, que o time carioca foi eliminado nas quartas de final pelo campeão Boca Juniors, de Riquelme.
O jogo da vida
Clébson foi titular do Vasco num jogo que até hoje é cultuado como um dos mais importantes da história do futebol sul-americano. Você já deve ter ouvido falar da final da Copa Mercosul de 2000, né?
Palmeiras e Vasco se enfrentaram no Parque Antártica em 20 de dezembro. Era o terceiro jogo da decisão, o desempate. Em casa, o time paulista abriu 3 a 0 no primeiro tempo, gols de Arce, Magrão e Tuta. Tudo resolvido, só que não. A reviravolta começou aos 13 minutos da etapa complementar, um gol de pênalti de Romário. Aos 24, a mesma receita: 3 a 2.
Júnior Baiano ainda foi expulso, o que tornou a missão vascaína impossível. Só que não, parte dois. Juninho Paulista empatou aos 40, Romário virou aos 48, e o Vasco foi protagonista de uma das viradas mais épicas do esporte. Clébson jogou os 90 aquela noite.
Estava tudo certo com o Cruzeiro
O empréstimo de Clébson junto ao Bahia vencia em 30 de junho de 2001. Apesar das conquistas, o Vasco estava sem dinheiro. Queria renovar o empréstimo. E o Bahia não aceitava: queria o jogador de volta ou dinheiro na mão. Interessados não faltaram. O Palmeiras foi um, como informou a "Folha de São Paulo" na época. Pensava no jogador para o elenco de um Mundial que nem aconteceu.
Quatro dias antes da morte, veículos de imprensa também noticiaram pela primeira vez o interesse do Cruzeiro na contratação do lateral-direito.
O que nem os jornalistas mais bem informados da época sabiam é que estava tudo certo. Paulo Maracajá, figura mais do que influente no Bahia, crava: "Sim, o acordo já estava fechado." O Cruzeiro pagaria aproximadamente R$ 3,5 milhões pelo jovem.
Era essa a notícia que Clébson queria dar à família na festa junina.
Antes do acidente
Hariadna de Oliveira Andrade dos Santos, 40, é a viúva de Clébson. Os dois têm uma história bonita juntos, porque se conheceram ainda adolescentes na escola —ele com 15, ela com 13 anos. Casaram cedo, em março de 1998 —ele com 19, ela com 17 anos. Cinco meses depois do casamento nasceu Cleberson, filho único do casal de contos de fadas.
Foi por muito pouco que Hariadna e Cleberson também não embarcaram na viagem que Clébson não terminou.
Foi assim: o jogador estava em fase final de contrato e também de tratamento de uma lesão. Ele treinou no Vasco na quinta (21) e só teria que voltar na segunda (25). Então, voou para a Bahia de folga. Em Salvador, passou em casa para pegar o carro e partir com esposa e filho para Itiúba, umas quatro horinhas de estrada. Hariadna lembra que foram até ao banco sacar dinheiro para a viagem e viram que o Vasco tinha pago um de três meses de salários atrasados. Também compraram fogos de artifício para levar à festa.
"A gente morava no Rio de Janeiro quando ele jogava no Vasco, mas como terminou o Campeonato Carioca eu vim para Salvador. Ele estava fazendo tratamento durante a semana e no final de semana ia para Salvador, aí retornava sempre na segunda ou terça-feira. Foram dois finais de semana que ele veio para cá e no último foi que aconteceu o acidente."
"Eu tive um sonho do acidente na véspera e falei com ele. Ele me disse que também tinha sonhado, no sonho ele caía de avião. Só que ele tinha chegado em Salvador, então era bobagem, sonho é bobagem. Mas eu disse que não iria."
"Aí ele falou: 'então vou com Cleberson'. Eu falei: 'não, ele só sai daqui comigo'. Então ele falou: 'está bem, só vou lá dar a notícia e volto'. No meu sonho o carro batia em um caminhão azul. Só que o caminhão em que ele bateu era vermelho."
- Antes de sair de casa, ele pegou o Cleberson no colo e saiu mostrando todos os quadros da casa, aí eu perguntei, 'por que você está fazendo isso?'. Ele respondeu: 'é para quando ele crescer lembrar do pai'. Mostrou Romário, Juninho Paulista, as fotos dos títulos com o Vasco da Gama, aí se despediu da gente e viajou
Hariadna Andrade, Viúva de Clébson
- Uma coisa que ele falava sempre para mim e para Cleberson é que a gente era a vida dele. Isso ele falava sempre, na época o nosso filho tinha dois anos e alguns meses e já falava: 'papai, você é minha vida.' Ele era uma pessoa tímida, calada, mas super do bem e super tranquila, graças a Deus. Tenho somente elogios
Sobre as últimas palavras do marido
O acidente
Clébson saiu sozinho de Salvador para Itiúba em seu carro modelo Astra, cor preta. A 200 km do destino, na Rodovia BA-409, na altura da cidade de Serrinha, fez uma tentativa de ultrapassagem em uma área com lombadas e faixa contínua e bateu em um caminhão-pipa que estava parado e sem sinalização. O motorista do caminhão jamais foi localizado. Clébson morreu na hora com o impacto da batida.
"A estrada estava nublada e estava chovendo. Meu irmão vinha dirigindo e tentou a ultrapassagem. Quando ele foi fazer a ultrapassagem ele não avistou o caminhão e quando avistou o caminhão já era tarde. É só o que a gente sabe", descreve Rosangela Moreira Santos de Souza, irmã três anos mais velha que o jogador.
Para Hariadna, a viúva, é delicado falar em culpa no acidente: "Quando fomos ao local vimos a marca da freada na pista e vimos que bateu de frente. Só não ficou amassado o porta-malas do Astra. E o relato foi que o caminhão estava parado sem sinalização, com todos os faróis apagados. Quem passou antes do Clébson tinha quase sofrido acidente. Também fizeram exame para saber se ele tinha álcool no sangue e não foi detectado nada. Uma tragédia."
A partir de 21h, amigos e familiares começaram a ser contatados. Uma amiga da família de Itiúba perguntou, sem maiores explicações, quais eram os modelos de carro dos filhos que não estavam em casa, Clébson e Toni. Tinha ouvido um boato. Depois, outro irmão foi avisado de um acidente com Clébson. Assim, a notícia foi tomando corpo e drama. Na delegacia de Feira de Santana, o carro, a mala e a confirmação.
- Foi muito difícil. Difícil demais, porque parece mentira. Meu menino mais novo, o Adriano, recebeu uma ligação e disse: 'mãe, um amigo da gente está dizendo que teve um acidente em Serrinha e Clébson morreu. Ave Maria, eu fiquei louca, louca, foi muito difícil.
Carmerinda Cezário Valentim, mãe de Clébson
Hariadna recebeu a notícia depois de toda a família, com mais cuidado. Foi sua mãe quem informou: "Tocou meu telefone umas 23h e era minha mãe lá de Itiúba. Eu já atendi chorando, porque eu sabia que tinha acontecido alguma coisa. Eu perguntei: 'mãe, foi o Keca, não foi?'. Aí ela disse que foi um acidente e ele estava em estado grave. Só que o delegado me falou depois que ele faleceu na hora."
Depois do acidente
Chamado de Keca na família, Clébson era o filho preferido de Carmerinda e Antônio. O pai morreu em 2015, a mãe não nega: "Ele era o meu xodó, os outros ficam até chateados." Ela lembra saudosa quando ficou oito dias no Rio de Janeiro acompanhando o filho. Foi até ao Maracanã ver um Flamengo x Vasco.
Além de um filho amoroso e preocupado, o jogador era arrimo de família, representava a chance de ascensão social da família e de oportunidades para os mais jovens. O salário não era muito alto quando ele morreu —e o Vasco atrasava sempre—, mas deu para enviar dinheiro para a construção da casa da mãe em Itiúba, onde 11 pessoas tiveram que se virar com R$ 900 da aposentadoria do pai.
Foram tempos difíceis. O Vasco pagou o sepultamento, mas meses depois foi cobrado por cinco meses de salários atrasados, além de R$ 100 mil em premiações. O clube só admitia um mês de atraso e FGTS. Não houve processo porque a família temia que acontecesse o mesmo que houve com a família de Denner —só teve acordo com a família 21 anos depois da morte do jogador, também num acidente.
"Fizeram uma missa no Vasco para o Clébson. No outro dia conversei com o Eurico Miranda, ele me disse que não devia nada. Falou isso pessoalmente. Que Deus o tenha, mas me dizer que não devia nada? E até hoje não pagaram os salários atrasados. Só depositaram o FGTS quando eu fui cobrar. Mas pronto, parou por aí", conta a viúva.
Dez dias depois da morte de Clébson, o Vasco contratou o lateral-direito Patrício, do Coritiba.
"Alegria acabou pra mim"
Junho é um mês difícil para a mãe de Clébson. As lembranças vêm, não tem jeito. Mas neste mês a situação é diferente: ela não reviverá as memórias na casa construída graças às remessas financeiras do filho jogador por causa de um incêndio. O depoimento forte e emocionante de Carmerinda Cezário Valentim, 64, dá o tom de um desastre que se renova, uma tragédia sem fim:
"Desde que meu filho faleceu eu fiquei depressiva duas vezes. Quando chega esse mês de junho eu já fico triste, porque a alegria acabou para mim. Eu não saio, não vou a lugar nenhum. A tristeza bate demais, para mim tudo parece que aconteceu hoje mesmo, não superei. E eu choro muito, muito e muito. Em fevereiro deste ano aconteceu uma coisa triste, eu tinha vontade de morrer.
Estava muito agoniada, coloquei fogo no jornal e levei para o sofá. Pegou fogo em tudo. No guarda-roupa, na televisão, eu joguei a televisão no chão e coloquei álcool para eu morrer. Mas Deus me deu esse livramento. Aí vieram os vizinhos, quebraram o portão e me tiraram. Mas eu não queria sair de casa, eu queria morrer. O povo gritava para eu sair e eu não saía de jeito nenhum. Estava sozinha dentro de casa, eu fiz isso para morrer mesmo. Eu fiquei louca, louca.
Foi muito fogo. Até os quadros dos meus filhos foram queimados, quadros que eu tinha do Clébson queimaram todos. Eu não lembrava de nada, eu não vi como me tiraram da casa, só me lembro de estar no hospital. Passei oito dias.
Agora essa agonia passou. Eu aluguei uma casinha de frente à minha, bem pequenininha, pago R$ 200 de aluguel. Mas está complicado, porque pago luz e água de lá, luz e água daqui, remédios para diabetes e depressão, muitas despesas. Estamos reconstruindo a casa aos poucos, teve que levantar parte das paredes, rebocar. Fizeram uma campanha, a prefeita deu as telhas, comerciantes deram madeiras, comprei o piso à prestação, estou pagando pedreiro. Quero voltar logo para a minha casa.
É que o Clébson faz muita falta, até hoje a gente não esquece, a família toda. Acabou com a família."
Memória online
Cleberson ainda não tinha 3 anos quando o pai morreu. Não se lembra do convívio com o pai, só de ouvir falar, ver fotos e vasculhar a internet.
No YouTube, assiste jogos completos do Vasco e vídeos que ajudam a se conectar de algum jeito com o pai: "No canal Desimpedidos tem o 'Bolívia Talk Show' e numa entrevista com o Juninho Pernambucano ele fala da final da Mercosul de 2000 e teve uma hora que falou sobre o meu pai. É legal ver isso, é bonito, me emociona."
Apaixonado por futebol por influência da família materna, já que o convívio com os parentes do pai foi reduzido ao longo dos anos, Cleberson também foi jogador. Aos 21 anos, idade próxima à do pai quando morreu, ele acaba de desistir da carreira depois de uma passagem pelo Provincial Ovalle, da Terceira Divisão do Chile. Não era lateral, mas meio-campista.
"Eu joguei no Bahia quando era mais novo, acredito que eu tinha uns 12 anos, mas não fiquei muito tempo lá. Depois joguei pelo Leônico, aqui da Bahia, até joguei um Campeonato Baiano sub-17. Depois eu fui para o Chile, treinei em um time lá, mas teve problema de documentação e desanimei. Parei. Agora quero continuar no futebol, mas de outra forma. Quero fazer um curso de gestão esportiva, uma coisa assim."
"Eu não jogava como o meu pai, mas dava para jogar bem".
"Ficaram lembranças e eu carrego todas com muito orgulho. Sempre escutei que meu pai tinha sido jogador, campeão pelo Vasco da Gama, cotado para a seleção brasileira, e isso sempre me fez bem. Por coincidência o meu avô por parte de mãe também era apaixonado por futebol, então sempre gostei, desde criança. E aprendi a conviver com essa história que acabou com 22 anos, tão tragicamente. Por isso sou tão grato à minha mãe, sempre forte, sempre do meu lado. Sem palavras."
O avô queria que Cleberson se chamasse Franz Beckenbauer. Clébson não deixou. Ele tem dois irmãos de um novo casamento da mãe.
Onde ele poderia chegar?
Se estivesse vivo, Clébson teria 41 anos hoje.
"Eu acredito que se ele ficasse entre nós iria ter uma oportunidade com a seleção brasileira. Tudo indicava, pelas partidas que ele fez no Vasco da Gama, pelos títulos que ele ganhou e pelo ser humano que era", diz Isaías Tinoco, que era supervisor do Vasco na época. Jorginho, o lateral campeão mundial, concorda: "Eu sinceramente acreditava muito que o Clébson chegaria lá. A gente lamentou muito a morte dele pela pessoa, pela família e também porque sabíamos que aquele atleta ia ser provavelmente o futuro lateral direito da seleção brasileira."
Daquele Vasco de 2000, só Clébson e mais dois ainda não tinham sido convocados. É difícil dizer o potencial que ele poderia atingir, mas há alguns fatos: o técnico que aprovou sua contratação pelo Cruzeiro foi Felipão, que no mesmo junho de 2001 assumiu a seleção brasileira na preparação para a Copa do Mundo.
Outro fato: Belletti, o reserva de Cafu no Mundial, teve a convocação muito contestada na época. "(...) por ser apenas mediano, pela concorrência de Paulo César e por ser reserva até no São Paulo, onde foi alijado pelo novato Gabriel", publicou a "Folha de São Paulo".
Além de Cafu e Beletti, Felipão também usou Alessandro, do Athletico Paranaense. Clébson, do Vasco para o Cruzeiro, também poderia entrar no radar. "O Clébson tinha um bom potencial e tudo para disputar a Copa. Agora temos que confortar a família dele e esperar que Deus arrume um bom lugar para ele", disse Romário, na época da morte.
São suposições.
- Até hoje a ficha não caiu. Como ele ficava muito tempo fora, não nos víamos sempre e sempre fica essa coisa irracional nas datas comemorativas de 'vai vir?', não vai vir mais. Chega São João, chega o mês de fevereiro no Carnaval, que eu sei que ele gostava de vir e a gente fica com aquela esperança. Depois cai a ficha. Então é pura lembrança mesmo, ele sempre foi um menino muito bom
Rosangela Moreira Santos de Souza, Técnica de enfermagem, irmã de Clébson
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