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Rafael Mello: Sabendo da história, dá mais orgulho de estar aqui

Ao levantar a calça do terno, por baixo da meia social, Roberto Dinamite exibe o tornozelo inchado para lembrar da necessidade de uma cirurgia que o livre das dores de uma vida toda. Depois de anos enfrentando as pancadas dos zagueiros e medindo forças no campo da política, o ídolo ergue a mão e pede uma trégua. Diante do processo eleitoral e da disputa por vaga na final da Copa do Brasil, contra o Avaí, hoje, às 21h50m, em Florianópolis, Roberto já não se mostra disposto a pagar qualquer preço pelos seus objetivos.

Como não passou do 1 a 1 no Rio, o time precisa vencer ou empatar, desde que marque dois ou mais gols, para avançar sem levar a decisão para os pênaltis, o que só ocorrerá caso se repita o placar do primeiro jogo. Empate sem gols classifica o Avaí. Na outra chave, o Coritiba recebe o Ceará depois do 0 a a 0 em Fortaleza — Acima de vitórias e conquistas, me preocupo que as pessoas possam se respeitar — disse um Dinamite nada explosivo ao lançar ontem a campanha “Eu Abro Mão”, inspirada na luta do Vasco contra o racismo e bancada pelo fornecedor de material do clube.

Transformado em estratégia de marketing, o sofrimento e o heroísmo do passado começaram ontem a deixar a marca da tolerância nas paredes de São Januário. Pressionado a afastar seus jogadores negros, pobres e operários, que conquistaram o título de 1923, o Vasco se desfiliou da Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA) para se manter fiel aos princípios e àqueles que defenderam sua bandeira. Passados 88 anos, a vergonhosa barreira imposta pelos clubes da Zona Sul criou o muro do orgulho.

Ao lado de Roberto e dos jogadores daquela conquista, os torcedores poderão ter suas mãos impressas numa ação que só se completa quando houver 1923 palmas e 9615 dedos pintados nos muros que agora guardam o patrimônio físico e moral dos vascaínos.

Demissão de amadores

Apesar da forte ligação com a história da cidade, a campanha foi desenvolvida por uma empresa paulista que trabalha para o patrocinador do clube.

O distanciamento no tempo e no espaço trouxe distorções visíveis ao movimento de 1923, muito além do excesso ou da falta de tinta nas mãos que eram impressas por uma sistema digital.

Num painel colado de alto a baixo em um dos trechos do muro, o texto de apresentação diz que a Amea exigiu do Vasco a demissão 12 jogadores, embora não houvesse relação trabalhista na época em que os atletas eram sócios do clube. O advento do profissionalismo, na verdade, viria em 1933 para admitir e não demitir negros, pobres e operários. Como empregados, todos podiam jogar, embora o acesso à parte social fosse submetida aos critérios de cada entidade.

No Vasco, as regras são as mais democráticas.

Antes de falar sobre os valores do clube, Roberto brincou ao ver a marca que deixou no alto do muro: “Pelo menos, a minha mão é grande para caramba aí em cima”. Esperado pela empresa paulista para uma “ação de marketing de guerrilha” em plena Rua Almério de Moura, o ídolo recebeu uma orientação no pé do ouvido, que só seria mistério até o fim da sua primeira resposta: — Nossa história começa aí, simbolizando a igualdade e a democracia e as parcerias, como a que hoje a gente tem também com a Penalty.

Tão natural quanto os compromissos profissionais de hoje é o espírito amador que resiste ao tempo. Do lado de dentro dos muros, três meninos negros da equipe de atletismo do Vasco celebravam o passado como um presente para o futuro.

— A gente pensa nas Olimpíadas do Rio — disse Rafael Mello, de 15 anos, que corre os 400m e os 110m com barreira já sem os obstáculos do racismo que os campeões de 1923 enfrentaram.

— Sabendo da história, a gente sente ainda mais orgulho de estar aqui.

O sentimento era compartilhado pelo engenheiro dinamarquês Nicolas Friis, que veio à América Latina pela primeira vez junto com sua impressora capaz de reproduzir arquivos digitais em paredes. Pelo www.facebook.com/Penaltybr, os torcedores podem deixar suas marcas que passarão por uma triagem antes de serem estampadas no muro. Da mistura, surgirá a unidade que já fascina o engenheiro nórdico, sob o sol tropical e a camisa dez do Vasco: — É por isso que estou aqui.

Pouco antes de Roberto chegar, um morador do Tuiuti vestido com uma camisa pólo do Flamengo completava o monumento à democracia da bola.

— O legal é ver que todo mundo é igual — disse Alecsandro Pereira, de 15 anos, que trocaria de camisa em seguida. — Vou fazer teste no futsal do Vasco. Sou Flamengo mas gosto de ver jogo em São Januário e na Copa do Brasil, estou torcendo para eles.

Eleição ainda sem data

A rivalidade se tornou mais saborosa quando um sorveteiro passou diante do muro vestindo a camisa do Figueirense, maior rival do Avaí em Santa Catarina. Adaptada à miscigenação brasileira, a hospitalidade portuguesa acolhe a todos desde 1923. Formado nesse ambiente, Dinamite defende a convivência pacífica entre contrários ao citar que aumentou o colégio eleitoral em quase dez vezes. Por falta de consenso na lista de votantes, a eleição, que estava marcada para 28 de julho, ainda não tem data confirmada.

Em seu aceno de trégua, o presidente só não abre mão de um título expressivo para renovar as tradições vitoriosas do clube e seu capital político.

— Nos preparamos para chegar à final e estamos confiantes de que tudo vai correr bem. Só espero que Vasco e Avaí façam um grande jogo e que a gente vença, mas dentro da normalidade do futebol — disse, tentando desvincular os resultados de campo e das urnas. — Não penso em eleição, apenas em ganhar esse jogo. Nossa maior contribuição na política é fazer o vascaíno voltar a participar.

No lugar das dores e do heroísmo, é hora de dar as mãos. Consciente de que o talento individual surge do jogo coletivo, o técnico Ricardo Gomes evita acompanhar o clamor que põe todas as esperanças em Bernardo.

— Ele desequilibrou, mas isso só aconteceu em função do bom desempenho de todo o time. Vamos aguardar para ver como será neste jogo.

Ao contrário da tradição acolhedora de São Januário, o time está pronto para enfrentar a hostilidade na Ressacada e lutar sem trégua pela classificação. Antes das ações políticas ou de marketing, o vascaíno quer erguer as mãos para comemorar a vitória.

No futebol, a campanha mais importante se faz em campo.

Avaí: Renan; Gustavo Bastos, Bruno e Revson; Felipe, Acleisson, Marcinho Guerreiro, Marquinhos Santos e Julinho; Marquinhos Gabriel e William.

Vasco: Fernando Prass, Allan (Fágner), Dedé, Anderson Martins e Ramon; Rômulo, Eduardo Costa (Fellipe Bastos), Felipe e Diego Souza; Eder Luis e Alecsandro.

Juiz: Leandro Vuaden. ■

(Matéria reproduzida diretamente da versão papel do Jornal O Globo)

Fonte: Jornal O Globo