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Projeto de lei promete pôr fim no caos financeiro dos grandes clubes

O mês de abril costuma ser visto como a temporada de más notícias no futebol brasileiro. É quando são fechadas as contas e divulgados os resultados financeiros dos clubes, que via de regra contabilizam os efeitos nefastos da gestão amadora e sofrível dessas agremiações. Estima-se que as perdas em faturamento do futebol brasileiro em 2020, uma temporada prejudicada pela pandemia, chegaram aos 2 bilhões de reais. Pela primeira vez desde a instituição do campeonato em pontos corridos, três multicampeões, Vasco da Gama, Cruzeiro e Botafogo, não disputarão a primeira divisão do Brasileirão. Apenas o Cruzeiro acumula dívidas que ultrapassaram 1 bilhão de reais, e mesmo uma potência como o Flamengo, o clube mais rico do país e relativamente bem administrado, viu a receita líquida do departamento de futebol recuar 31%, caindo para 614,6 milhões de reais.

Da mesma forma que prometem choro e ranger de dentes entre os cartolas, as próximas semanas podem trazer também um alento para os combalidos clubes nacionais. A expectativa é que, até o fim do mês, seja votado no Senado um projeto de lei proposto pelo senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente da Casa, que promete dar condições para que as agremiações consigam enfrentar a iminente insolvência financeira. O dispositivo legal prevê a criação de uma nova base societária no futebol brasileiro, batizada de Sociedade Anônima do Futebol, que permitirá a emissão de ações, com capital aberto ou fechado, e a regulação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Com isso, será possível, com o apoio de um conjunto de regras, captar recursos no mercado financeiro, no modelo clube-empresa.

Agremiações de menor porte, como o Cuiabá e o Red Bull Bragantino, além de América Mineiro, Botafogo de Ribeirão Preto (SP) e Ferroviária (SP), já se aproximam desse modelo de gestão. Estão sujeitas a uma tributação maior que o modelo associativo vigente entre os grandes e passíveis de punição por má gestão, mas contam com estrutura muito mais organizada e seguem os princípios da governança corporativa. Com a aprovação do projeto, atualmente nas mãos do senador Carlos Portinho (PL-RJ), relator indicado por Pacheco, há a esperança até mesmo de que o ambiente se torne mais favorável para a atração de capital estrangeiro. “É uma medida importante para permitir que a iniciativa privada possa participar do futebol”, explica o senador Pacheco.

Celeiro de atletas para o futebol global, o Brasil encontra-se hoje completamente à margem da rota do dinheiro globalizado que abastece agremiações mundo afora. Um exemplo é o conglomerado City Football Group, que administra o britânico Manchester City. Baseado em Abu Dabi e com os cofres recheados de petrodólares, o grupo investiu em diversos clubes pelo mundo, incluindo o Bolívar, na Bolívia, e o Atlético Torque (atual Montevideo City Torque), no Uruguai. Entretanto, não aportou um centavo sequer no futebol brasileiro. “É sintomático a maior holding de futebol no mundo ter entrado nesses dois times latino-americanos, mas ter passado longe daqui”, afirma Pedro Daniel, diretor executivo de esportes, mídia e entretenimento da consultoria EY. “Nesse sentido, a proposta que tramita no Senado é importantíssima para a regulação do mercado. Sem ela, não há segurança jurídica.”

A nova regulamentação também ajudará a coibir o avanço de investidores aventureiros sobre um mercado extremamente fragilizado e desesperado por recursos. Recentemente, um caso maculou o conceito de clube-empresa no país. Em 2017, o Figueirense, de Florianópolis, teve 95% de seu departamento de futebol cedido à holding de investimentos Elephant, com a promessa de recursos e de boa administração. O contrato teria duração de duas décadas, mas terminou em apenas dois anos, em meio a atraso de pagamentos de funcionários e atletas, falta de alimentação e transporte, diversas ações judiciais e até uma humilhante derrota por W.O. com multa milionária. “Foi ruim para o mercado como um todo”, avalia Daniel, da EY. “Se houvesse um processo de análise sério, essa parceria não teria ocorrido. Quando se compra um clube, é necessário demonstrar garantias e os planos de ação para o órgão regulador”, diz. Na Inglaterra, por exemplo, essa análise é responsabilidade da Premier League. Na Espanha, da liga e do Ministério do Esporte.

Uma supervisão responsável, com punições claras e aplicáveis, é crucial para que a renovação do futebol aconteça no Brasil. O projeto de lei idealizado por Pacheco deve vir acompanhado de gatilhos, como a avaliação das finanças dos clubes. Na Europa, as agremiações que não passam pelo crivo da União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) são punidas com o veto à participação em competições e a impossibilidade de comprar jogadores. “Não há caminho a não ser a profissionalização. Os clubes podem até se manter no modelo de associação, mas precisam aprimorar suas gestões, ou estarão fadados a permanecer em divisões inferiores até caírem no ostracismo”, diz Carlos Aragaki, sócio da consultoria BDO.

Atualmente, os times constituídos como associações sem fins lucrativos são isentos da maior parte dos impostos. O projeto de lei propõe um período de transição, no qual os clubes-­empre­sas perderiam a isenção gradativamente. Botafogo e Cruzeiro estão se estruturando para isso. “Estamos definindo um planejamento estratégico, coisa que nunca tivemos. A ideia é nos tornarmos a primeira sociedade anônima do futebol assim que o projeto for aprovado”, diz Sérgio Santos Rodrigues, presidente do Cruzeiro. Com o baque da pandemia e a perspectiva de um arcabouço legal para mudanças, o momento para os times se organizarem chegou. E para muitos pode não haver outra chance.

Fonte: Veja.com