Futebol

Perto do Cruzeiro, Muriqui desabafa: Ouvia um monte de conversa fiada no Vas

Descendente de escravos, Armando dos Santos, 96 anos, se libertou faz tempo da submissão aos poderosos. Depois de trabalhar 70 anos no América e de ser acolhido pelo Madureira, só usa o diminutivo para se referir aos times grandes. A liderança do tricolor suburbano no Grupo B lhe dá razão. Num Estadual equilibrado, todos são iguais perante a lei do baixo nível técnico. Entre os técnicos de Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo, nenhum tem conquista de peso na elite do futebol nacional. Na soma de pontos nos dois turnos, os grandes só aparecem a partir da sexta posição.

Após vencer rubro-negros e tricolores e demitir seus treinadores, o Madureira está armando mais uma. Basta uma vitória sobre a lanterna Portuguesa, domingo, em Conselheiro Galvão, para o time assegurar a vaga nas semifinais, na frente de Vasco e Botafogo. Passado o tempo em que os grandes davam chicotadas impiedosas nos pequenos, o Madureira está livre para sonhar como seu primeiro título.

- Vamos treinar contra a Portuguesa. Não tenho mais que ser humilde, já ganhamos do Fluzinho e do Flamenguinho - brincou Seu Armando, ex-lavador de carros que hoje mora na sede do clube.

Muriqui deixa o Vasco para trás

Madureira sabe que não basta ser grande. O bairro chorou no carnaval. Horas depois de a Portela e o Império Serrano ficarem de fora do desfile das campeãs, o orgulho renasceu nas cinzas. A vitória por 3 a 2 sobre o Flamengo na última quinta-feira, no Maracanã, era apenas o início da evolução que terminou em baile, nos 3 a 1, sobre o Nova Iguaçu. Esquecido no Vasco, Muriqui surge como o porta-estandarte da reação suburbana.

- A diferença entre o Vasco e o Madureira existe, mas não é tanto assim. Estamos brigando pela vaga e com mais pontos que ele - disse o atacante, autor do gol da vitória sobre o Flamengo. - Ali começou a mudar tudo.

O Madureira terminou o primeiro turno na última posição com três pontos e com dois técnicos demitidos: Renato Trindade e Dé. Alfredo Sampaio assumiu o cargo e o risco de um esquema ofensivo. Com três atacantes e dois apoiadores, em quatro jogos, o Madureira fez nove gols e sofreu seis.

- Não tenho medo de perder o emprego - disse Sampaio, que é presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais e dono de uma empresa de marketing esportivo. - Faço o álbum de figurinhas do Brasileiro e trabalho com a imagem dos jogadores. Com uma conduta legal, as coisas acontecem.

Alfredo frisa que não é agente de jogador. Apenas faz a ponte entre os atletas e as empresas que se interessam pela sua imagem.

- Participei daquela promoção de uma fábrica de refrigerantes que fez os bonequinhos dos jogadores da seleção brasileira.

Nas mãos de Alfredo, a imagem de Muriqui começa a mudar. O atacante passou a última temporada pelos cantos em São Januário. No meio do ano já se livrara das lesões musculares, mas não da imagem de atleta boêmio e desinteressado. O rótulo, nada recomendável para um garoto de 19 anos, veio dos próprios integrantes da diretoria e comissão técnica do Vasco. Em dezembro, o atacante preferiu voltar para o Madureira a renovar com o Vasco.

- Ninguém conversava comigo, mas ouvia um monte de conversa fiada. Faço as mesmas coisas que fazia lá e estou jogando, alguma coisa estava errada - disse Muriqui, que passou oito meses em recuperação de uma lesão na coxa esquerda. - Diziam que eu não queria me ajudar, mas como poderia se não me ajudavam em campo.


Além de voltar a jogar e fazer gols, Muriqui diz que foram poucas as mudanças em sua vida.

- Tenho 19 anos, seria mentira dizer que não gosto de sair. Mas se fosse sempre, não agüentaria.

O atacante, que já morou na sede do Madureira, hoje vive em Vila Valqueire, a dez minutos de carro dali. Muriqui diz que tem ido mais a igreja e que cortou a cerveja.

- O que ele gosta é de hambúrguer - brinca Raquel Alves, sócia do Madureira há 28 anos.

Mulher do ex-jogador Nair, meia-esquerda do time entre os anos 50 e 70, Raquel não aposentou a paixão tricolor. Diariamente ela vai ao clube, onde vende sanduíches, bolos e sucos. Entre seus clientes, estão os meninos das divisões de base, que ainda saboreiam o gosto doce da juventude. Revelado no clube, Muriqui ainda é um deles.

Atual campeão estadual juvenil, o Madureira cuida com carinho de suas promessas. O celeiro já produziu nomes para a história do futebol brasileiro como Jair da Rosa Pinto, Didi e Marcelinho Carioca. Hoje, o clube vive da tradição comercial do bairro. O aluguel de salas no Mercadão de Madureira mantém os salários e os negócios em dia. Dentro da tradição de revelar e vender jogadores, já se fala na ida de Muriqui para o Cruzeiro. De acordo com a nova realidade do mercado de treinadores, em que os nomes consagrados estão longe do Rio, Alfredo também pensa grande:

- A desorganização e o atraso de salários afastam muita gente. O lado bom é que novos nomes surgem. Se eu tiver uma chance num grande, serei sempre ofensivo.

Muriqui também olha adiante

- Para o Vasco ele não volta. A estrela dele vai brilhar no Cruzeiro - disse seu Armando, enquanto afagava o atacante. - Ele é meu neto. E aproveito para namorar as meninas que vêm atrás dele.


Apesar da brincadeira, seu Armando tem lições importantes. Uma delas é não ficar submisso aos grandes. Outra, é a de manter o bom humor. Em casa, na acolhedora descontração do subúrbio, Muriqui e o Madureira voltaram a sorrir. A longevidade de Armando, a margem dos clubes grandes, ensina que é preciso dar um passo atrás para se chegar na frente.

Fonte: ge