Opinião: Romário em silêncio
Romário caminha rumo a seu último vestiário. Falta pouco. Faltam dez gols, talvez um pouco mais. Se a contagem romária é malandramente vitaminada ou não, a torcida pouco quer saber. O que importa para os vascaínos é curtir a sensação de fazer história, não importando se o gol é de mão, de cotovelo, ombro ou omoplata. Se foi feito contra o Barreira de Bacaxá, contra o Malines da Bélgica ou contra o time da oitava divisão da Namíbia. Importa é que serão mil bolas na rede adversária.
Será, de certa forma, uma redenção cruz-maltina. Foram as redes do Vasco, afinal, que abrigaram o primeiro e único milésimo gol do planeta - aquele, de um tal de Édson, em 1969, no Maracanã. Agora, faltam dez gols para que Romário siga os passos do Rei. Mas, amuado e magoado, o Baixinho recolheu a língua. No último domingo, foram três gols em silêncio. Romário deixou o campo sem dar uma palavra, calado como o poeta Pelé.
Aos 41 anos, lá estava novamente o baixinho marrento de São Januário, ou da Vila da Penha, ou de Eindhoven, Barra da Tijuca ou Barcelona. Romário, de peito estufado e olhos vidradamente sonsos - olhos capazes de um desprezo total e absoluto. O rei-sol ou o príncipe- de novo em seu elemento. Tudo girava, novamente, em torno de Romário de Souza Faria. Quando chegou ao Brasil com a Copa de 94 nos braços, Romário era uma unanimidade nacional. Seu torneio de futevôlei, na praia da Barra da Tijuca, tinha transmissão de TV. Seu carro seguia pela contra-mão com batedores. Ele mal podia sair na rua, era cercado de fotógrafos e amigos-seguranças por todos os lados.
Esse tempo passou e levou o cerco. Mas Romário continuou sempre em evidência. Soube conviver com a fama e desfrutá-la. Teve dinheiro, carros, mulheres e casamentos em profusão. Depois dos dissabores de 1995, quando chegou a se intitular deus, o Baixinho encontrou o espelho. E entendeu a imensa repercussão de cada palavra ou ato de um ídolo. Anos e muitas voltas depois, aí está Romário sentando no banco do Vasco, marcando três gols num só tempo, apesar de tocar na bola por apenas 17 segundos. E evocando em silêncio a revolta-deglutição de Zagallo. Sua eloqüente mudez de São Januário dizia vocês vão ter que me engolir a cada pergunta desprezada.
É compreensível a chateação de Romário. Seu futebol tem sido criticado a agilidade e a velocidade foram embora, e ele sabe. Mas, pelo visto, ele esperava algum reconhecimento pela marca histórica e pela persistência e não o tratamento algo gélido e crítico que a mídia tem dispensado a seus mil gols. Romário nunca levou desaforo para casa. Sua resposta para as críticas específicas foi o silêncio generalizado. Direito dele. Pior para os vascaínos que gostariam de ouvir o que o Baixinho tinha a dizer.
De toda sorte, sua reação é exagerada. Por mais que a torcida comemore a marca histórica, é obrigação jornalística examiná-la e analisá-la. E o torcedor do Vasco que não tiver um cérebro a menos saberá entender isso. Há, evidente, os burraldinos que preferem a ignorância. Os jornalistas têm que checar os números. E fazer as ressalvas que têm sido feitas. Mas a grande ironia é que os números, de certa forma, jogam a favor de Romário. Eis que quase todos os artilheiros milenares navegam na canoa baixinha. São autores de mil e tantos não comprovados gols.
O mais célebre deles é o brasileiro Arthur Friedenreich, que até o site da Fifa chegou a apontar como autor de mais de mil gols. Mas o jornalista Alexandre da Costa, autor de O Tigre de Futebol, um livro sobre Friendereich, conferiu registros dos jogos em que o artilheiro atuou em jornais da época e só conseguiu comprovar 554 gols em 561 jogos. A lenda (bem explicada recentemente por Maurício Stycer numa reportagem da revista Época) é de que ele teria marcado 1329 gols. A verdade está em algum lugar no meio - mas ninguém tem certeza do real número marcado por Friedenreich. E esse é o dado importante.
Outro artilheiro milenar seria o húngaro Férenc Puskas, que teria marcado 1176 gols em 1300 partidas. Mas um exame das estatísticas do baixinho gordinho que encantou o mundo nos anos 50 tira a lenda de campo. Gols checados e recheados do major húngaro foram, na verdade, 766 em 851 partidas (596 em partidas oficiais).
O alemão Gerd Müller, Der Bomber, é um fenômeno. A contagem germanicamente vitaminada de Müller chega a impressionante marca de 1461 gols em 1216 partidas com um detalhe histórico. O milésimo gol de sua vida foi (ou teria sido) aquele que deu o título da Copa de 1974 para a Alemanha. E isso sem contar os gols de Müller nos juniores do TSV Nördlingen (que seriam mais de 500!). Agora... levando em conta gols oficiais... Müller marcou apenas 735 vezes.
A lenda campeã é a do austríaco naturalizado tcheco Josef Bican, que teria marcado mais de cinco mil gols nos anos 30, 40 e 50. Bican era rapidíssimo (fazia 100m em 10s8), chutava com as duas (inclusive pênaltis) e, dizem, só perdia uma chance de gol em 20. Mas... seus gols verificados e comprovados foram meramente 643 pelos campeonatos austríaco e tcheco. Ele certamente fez bem mais que isso, pois a lista não computa nenhum jogo amistoso e sua carreira foi pra lá de longa: Bican começou em 1931, jogou pela Áustria na Copa de 1934 e só parou em m 1955 aos 42 anos.
Em outras palavras... em todas as contagens mesmo na de Pelé sempre foram incluídos gols não-contabilizados, para usar uma palavra da moda. Mas, nesse grande Caixa 2 de artilharia, todo Delúbio é perdoável. Porque todos os gols aconteceram e a estatística no futebol só passou a ser levada a sério recentemente. O que importa é que os gols de Pelé pela seleção do exército foram gols. Os gols de Romário contra o Olaria aos 13 anos foram gols. Os gols de Gerd Müller pelo Fort Lauderdale Stars... foram gols. E fazer mil gols é impressionante de qualquer jeito.
São mil bolas na rede alheia. Mil vezes que o goleiro foi até o barbante buscar a redonda. Mil comemorações. Mil alegrias de um, dez, cem mil ou 180 milhões. Em outras palavras, ressalvas à parte, Romário merece caminhar rumo a seu último vestiário ouvindo aplausos e não em silêncio. Merece um adeus épico e não uma despedida melancólica contra os times australianos da vida. Essa, no fundo, é sua última batalha. Quando, camisa número 1000 às costas, o Baixinho tirar as chuteiras pela última vez, o futebol terá ficado mais pobre. E Romário deixará o campo em seus termos - cercado de câmeras por todos os lados - rei-sol mais uma vez.
- SuperVasco