Futebol

Opinião: Romário e os idiotas da objetividade

Hoje vou fazer de Romário o meu personagem da semana. Embora sem ter a barriga insubmersível de Mao Tsé-tung, Romário está fazendo mil gols, como Pelé. Esse milheiro é algo de irreal e deslumbrante como As Mil e Uma Noites. Às vezes eu me pergunto, no meu assombro: - \"Como é que um só sujeito pode fazer mil gols?\". Como diz a minha vizinha, gorda e patusca: - \"Mil gols não são dez, nem quinze\".

Dirão os idiotas da objetividade que Romário não fez mil gols. Eis a verdade, amigos: - eu sei que os fatos não confirmam a estatística. Ao que o profeta pode responder: - \"Pior para os fatos!\" Que importa a nós tenha Romário 899 ou três mil gols? Em qualquer outro país, a proeza teria provocado uma justa euforia. Aqui, não. Juntaram-se todas as invejas, todas as frustrações contrariadas pela dionisíaca e, ao mesmo tempo, santa molecagem carioca de Romário. Os \"entendidos\" estão diante do óbvio e não enxergam o óbvio. Com a obtusidade de ateus, a maioria da imprensa, e a quase unanimidade do rádio e da TV, têm do feito uma visão crassamente realista. No subdesenvolvido, a imparcialidade não é uma posição crítica, mas uma sofisticação insuportável. O sudesenvolvido não gosta do subdesenvolvido. Fingindo-se de justa, quase toda a crônica falada e escrita desmoralizou o feito, retirando-lhe todo o dramatismo e a importância.

Mas o povo estava com Romário. Domingo, o Estádio Mário Filho estava abarrotado. Por conta do jogo, a cidade suspendeu todos os pecados. Que eu saiba, não houve um único e escasso assalto. O curioso é que, há muito tempo, aqui mesmo desta coluna, fez-se o vaticínio de que o gol sairia no Maracanã. O grande acontecimento tem a paisagem própria. Como já escrevi, Austerlitz não podia ser disputada num galinheiro. É óbvio que, depois do Estádio Mário Filho, todos os campos pequenos se tornaram galinheiros irremediáveis. São Januário é um galinheiro. O Pacaembu é um galinheiro.

Contra o Flamengo, Romário foi maravilhosamente Romário. Foi, em primeiro lugar, um homem isento de idade, isento de tempo, com uma vitalidade de dezessete anos. Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Romário, não sei se 40, 41, 42 anos. Eu, com mais de noventa, custo a crer que alguém possa jogar com essa idade. Geralmente, o homem de 40 anos está gagá para o futebol, está babando de velhice esportiva. Mas o caso de Romário mostra o seguinte: - o tempo é uma convenção que não existe nem para o craque, nem para a mulher bonita. Existe para o perna-de-pau e para o bucho.

Quando Romário fez o primeiro gol, criou-se um suspense colossal no estádio. Quarenta mil pessoas morriam nas arquibancadas, nas ex-gerais, nas cadeiras. Faltavam uns dois minutos quando aconteceu o seguinte: - houve um momento em que Bruno estava batido irremediavelmente. O arco rubro-negro abria seus sete metros e quebrados a Romário. Em qualquer hipótese, o goleiro ia se tornar uma figura histórica: - defendendo ou não. Romário chutou rente à grama. Fez-se um silêncio ensurdecedor que toda a cidade ouviu. Nenhum gol foi tão merecido. Quando a torcida flamenga gemia a palavra gol, eis que ocorre o milagre: - vem o pé de Bruno e salva o Flamengo de um gol certo, infalível, catastrófico.

Ao terminar o grande Vasco x Flamengo, o profeta tratou de catar os trapos e saiu do Maracanã, mas de cabeça erguida. Era um vencido? Jamais. Alguém dirá que não previa o pé de Bruno. Exato. Mas o profeta já anunciou: - \"Romário, gol mil no Maracanã\". Desta coluna, eu já fiz um apelo aos brasileiros, vivos ou mortos. Ninguém pode faltar ao Maracanã domingo. Se, hoje, negamos o milésimo gol, daqui a duzentos anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: - \"Aquele Vasco x Botafogo!\".

* André Fontenelle, vascaíno, carioca-paulistano, é editor da revista Veja. Foi meu chefe no Diário Lance! e na revista Placar, em 2001. É o maior jornalista com quem já tive a honra de trabalhar.

Nelson Rodrigues vocês sabem quem é. Há quem garanta que ele não viu Romário jogar, como se Nelson não fosse mais ao Maracanã todos os domingos... Só não tem mais acesso à máquina de escrever pelo menos a estas que hoje viraram peças de museu , e detesta computadores. Coisa que Fontenelle resolveu com facilidade.

Fonte: Blog de André Rizek - Carta-Bomba