Futebol

OPINIÃO: Malandragem

Por conta da comemoração dos 40 anos do eterno artilheiro Romário, fiquei pensando no seguinte: a despeito de ser uma das coisas mais praticadas fora dos campos de futebol, a malandragem anda desprestigiada dentro das quatro linhas. O que foi feito da malandragem que sempre caracterizou o jogador brasileiro? Não me refiro à malandragem do mal, prima-irmã da desonestidade e da preguiça. Falo da malandragem do bem, que se confunde com criatividade, inteligência, alegria. Ou, para simplificar, a malandragem de Moreira da Silva. Com raras exceções, nossos jogadores andam europeus demais, cheios de obsessões táticas, tristonhos até. Será que a partida de Kid Morengueira - nosso último malandro -, há mais de cinco anos, simbolizou o fim do estilo brasileiro de jogar futebol?

Moreira foi daquelas pessoas que justificam um país. E, lá no céu dos malandros, ele deve ficar aborrecidíssimo com a saraivada de críticas que nossos jogadores recebem sempre que arriscam uma visagem, uma firula. Exemplos não faltam. Quando jogava pelo Botafogo, Túlio quase apanhou por ter marcado um gol de calcanhar, numa jogada na qual o goleiro já estava batido. Pedrinho, então atuando pelo Vasco, recebeu uma tesoura voadora do rubro-negro Júnior Baiano como punição pelo \"\"crime\"\" de fazer embaixadinhas. Jogando pelo Corinthians, Edílson certa vez fez umas presepadas e parou a bola nas costas - para imediatamente levar chutes e socos, aplicados pelo palmeirense Paulo Nunes. Muitos dos que recriminaram Edílson acharam a reação de Paulo Nunes normalíssima.

Agressores viram heróis. Bandidos são os craques que \"\"humilham\"\" os adversários. Quanta bobagem! Humilhado é o trabalhador que tem que pegar três ônibus para chegar ao batente para, no final do mês, ganhar um salário de trezentos mangos e uma cartela de tíquetes. Os jogadores dos grandes clubes do Brasil recebem dezenas de milhares de reais por mês. Tenho certeza de que eles conseguirão sobreviver a um chapéu, a uma caneta ou a um gol de letra. Nessas horas é que o pragmatismo americano prova seu valor. Lá, quando um jogador de basquete acha que deve fazer uma humilhante enterrada, não só quase quebra a tabela nas fuças do adversário, como dança, faz caretas para a torcida e ri dos marcadores. Faz parte do show. Os torcedores uivam de alegria, enquanto os comentaristas gritam: \"\"Oh, my God! What a play!\"\"

Maldade? Tripudiação? Nada disso: estratégia. Um jogo é disputado nos planos técnico, tático, físico e emocional. Um toco ou uma enterrada espetacular na casa do adversário irrita-o, mina sua confiança e ainda pode indispô-lo com sua torcida. Se realizadas em casa, as jogadas \"\"humilhantes\"\" incendeiam os fãs e contagiam o time. Muhammad Ali jamais teria batido o gigante George Foreman, no Zaire, se não o tivesse fustigado com fintas e provocações durante todo o combate. O torcedor brasileiro, cumpre esclarecer, gosta dessas coisas. Quando moleques, os dribles que aplicávamos eram invariavelmente acompanhados por gritos de \"\"iiiiih!\"\". Claro que os jogadores não precisam exagerar. Aquela famosa reboladinha do Edmundo na frente do Gonçalves foi um pouco além da conta. Mas antes a molecagem exagerada que a cartilha carola dos treinadores linha-dura.

Eis aqui o caroço da questão: se formos enfrentar os times europeus e asiáticos com as armas deles - aplicação tática, preparação física e disciplina - teremos dificuldades. Nem com todas as cartilhas e códigos espartanos de conduta os jogadores brasileiros conseguirão ser mais disciplinados do que alemães e japoneses. Mas certamente podemos ser mais malandros do que eles. A história da Seleção Brasileira é a história de malandros e dissimulados - malandros do bem, insisto - do quilate de Zizinho, Didi, Garrincha, Pelé, Romário e Ronaldinho. Na Copa, quero ver nossos malandros na praça outra vez, caminhando na ponta dos pés como quem pisa nos corações. E, se isso acontecer, poderei gritar, feliz como o Kid Morengueira: \"\"Etelvina, acertei no milhar!\"\"

Fonte: Jornal dos Sports