O centenário de Ademir Marques de Menezes
Nascido há exatos 100 anos, em 8 de novembro de 1921, o cidadão Ademir Marques de Menezes morreu vítima de um câncer em 11 de maio de 1996. Enquanto o jogador, que pela proeminência do maxilar ficou conhecido como Queixada, foi vítima de um gol em 16 de julho de 1950. O chute rasteiro de Ghiggia é relembrado até hoje como o último lance da final da Copa de 1950.
É como se o jogo tivesse acabado ali, em morte súbita. Não sobrou nada depois na memória coletiva, o gol de Ghiggia devorou tudo. O que explica a força do nome do atacante uruguaio até hoje, mais de setenta anos depois.
A lembrança que atravessa gerações é contraste proporcional ao esquecimento de outra, de jogadores brilhantes, cujas trajetórias foram eclipsadas por aquele gol. Como se, fenômeno da natureza, aquela bola, ao cruzar a linha da meta de Barbosa, como já vimos e revimos tantas vezes, em direção ao fundo da rede, em câmera lenta, fosse apagando trajetórias de sucesso construídas ao longo de anos, até então, com muito brilho.
Não, o gol de Ghiggia não foi o último lance da final da Copa de 50. Poucos se dão conta, mas o Brasil quase chegou ao empate nos últimos minutos. Uma bola cabeceada por Ademir foi defendida de forma espetacular pelo goleiro uruguaio Máspoli, descreve com veemência a narração da transmissão original pelo rádio, um lance remoído pelo próprio Ademir muitos anos depois, em longa entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, pernambucano como ele.
O gol do empate seria o do título do Brasil. E o 10° de Ademir, até hoje, com seus nove, o brasileiro com o maior número de gols numa edição de Copa do Mundo, o artilheiro isolado daquele Mundial.
No documentário Um artilheiro no meu coração, o jornalista Sérgio Cabral, “um vascaíno bem nascido graças a Ademir”, segundo as palavras do próprio, exagera: “Se Ademir faz aquele gol, a discussão hoje era: Pelé ou Ademir?.”
Mas, logo no início do filme, o também jornalista Achiles Chirol tem uma definição menos apaixonada, que resume a essência da intenção de Cabral. Diz Chirol: “Aquela Seleção de 50 tinha jogadores que, se não tivessem perdido a Copa, estariam hoje sendo lembrados em todos os lugares. Vocês não precisariam estar fazendo um levantamento histórico da história de Ademir, porque ela estaria plantada em todos os lugares.”
O desabafo do próprio Ademir, em outro trecho da já citada entrevista ao conterrâneo Geneton, vai na mesma linha: “O segundo lugar pro Brasil não serve. Então, eu chego aqui, saio no Rio de Janeiro, tenho muitos amigos e é sempre aquela conversa… olha, esse é o Ademir que jogou na Copa de 50.
Quer dizer, ele não diz que eu fui campeão pelo Vasco, que eu fui campeão pelo Sport, que eu fui campeão pelo Fluminense, que eu fui campeão Pan-Americano, Sul-Americano… não, ele diz: foi aquele do Maracanã, que o Uruguai venceu, esse é o Ademir… quer dizer, e os outros títulos que eu tenho acabaram. Eu sou o eterno vice-campeão.”
Não é difícil imaginar o que teria sucedido a Ademir em caso de título do Brasil. Não só a ele. Em vez de Ghiggia, haveria toda uma geração de craques brasileiros imortalizada, a reluzir ao longo da história, e a anteceder os que hoje são tratados como os primeiros heróis do futebol brasileiro, os campeões de 1958: Pelé, Garrincha, Vavá, Nilton Santos, Zito, Gilmar, Zagallo e companhia.
Ademir haveria de ter o merecido reconhecimento, ao lado de nomes como o de Zizinho, Barbosa, Jair, Friaça e tantos outros. Pois Ademir foi este tipo de jogador raro, que aparece de tempos em tempos, e se mantém como referência, no topo, por um período considerável, no seu caso, por mais de uma década, empilhando feitos. Hoje, pouco lembrados. Mas, nos anos 40, o ilustre pernambucano chegou a receber mais de cinco milhões de votos ao vencer um concurso que se propunha a mensurar a personalidade mais popular do país.
Ademir é um dos maiores jogadores da história do Vasco da Gama, com 301 gols marcados pelo clube. A grande figura do lendário time que dominou o futebol do Rio de Janeiro por quase uma década, o Expresso da Vitória. É também o personagem central de um capítulo marcante da história do Fluminense, quando foi contratado como estrela pelo Tricolor das Laranjeiras em uma negociação bombástica, polêmica, que o tirou de São Januário e, no fim das contas, resultou no gol do título que tirou o Fluminense da fila no Campeonato Carioca de 1946.
Foi ainda o jogador mais precoce e de maior sucesso já revelado pelo Sport. Um precursor ao abrir as fronteiras do Nordeste para o futebol do Sudeste ainda muito jovem. Pela maneira como atuava, alterou sistemas táticos. Interferiu na forma do jogo. Ficou marcado por seus "rushes", as arrancadas que viraram poesia e crônica sob a pena dos mestres João Cabral de Melo Neto e Armando Nogueira.
Pela Seleção, marcou 37 gols em 41 jogos. Formou a linha ofensiva no primeiro título do Brasil no exterior, dois anos depois do Maracanazo, no o Pan-Americano de 1952, no Chile, com direito a um afago do destino: a vitória sobre o Uruguai durante a campanha.
Outros punhado de gols em Copas do Mundo poderiam se juntar aos nove marcados em 1950, não fosse o hiato de duas edições: em 1942 e, sobretudo, em 1946, quando já desfrutava do auge da carreira. Um período sem Copas em virtude da Segunda Guerra Mundial
Eu, que sempre me enxerguei como um conhecedor do futebol, já tinha 22 anos de idade quando tomei conhecimento da trajetória deste nobre conterrâneo, em meados de 2006, à procura de um tema para materializar o projeto de conclusão do curso de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, um documentário.
Decidi então pesquisar sobre o jogador da estátua de bronze que reluzia num giradouro em frente à sede do Sport Club do Recife. Quem era aquele? Apesar da estátua, o nome do homenageado causava desconhecimento e estranheza. A inquietação acabou por convencer outros dois colegas a encarar a empreitada de contar a história de Ademir.
No país sem memória, quinze anos depois, para a imensa maioria da população, incluídos os que acompanham o futebol, a pergunta sobre quem foi Ademir Menezes ainda ecoa como uma grande interrogação.
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