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Jornalista analisa situação financeira do Vasco em 2020

Fim da administração de Alexandre Campello foi marcado por várias crises: financeira, política e esportiva. Endividamento crônico e ineficiência no futebol levaram o clube para a Série B. 

É comum que o presidente, ao se despedir do cargo, faça um discurso perante conselheiros e associados para comunicar resultados de seu mandato. No Vasco, agressiva que é a política, Alexandre Campello saiu com uma carta aberta em que parecia estar deixando a guerra.

O cartola escreveu que, após três anos de mandato, "detonou o sistema" – o vocabulário é propositalmente similar ao do filme Tropa de Elite. Campello afirmou ter desmantelado um esquema de corrupção no departamento que cuidava das operações de jogos.

– Não vou usar de meias palavras: funcionários, com a conivência — ou melhor — a cumplicidade de dirigentes, roubavam dinheiro da bilheteria em todas as partidas. Não satisfeitos, essa quadrilha ainda apresentava recibos fajutos para inflar as despesas de jogo, em conluio com prestadores de serviço – escreveu Campello.

A carta foi publicada num momento tenso. Àquela altura, tinham sido realizadas duas eleições para encontrar um presidente para o Vasco. Na primeira, invalidada pela justiça, Leven Siano saiu vencedor. Na segunda, venceu Jorge Salgado, quem de fato se tornou presidente.

Campello chegou a tentar a reeleição, mas desistiu da candidatura no meio da confusão. As divergências na eleição vascaína levariam meses para serem resolvidas, e somente na justiça. Muito atacado nesse processo, restou ao médico tentar se explicar na carta.

– Fiz o que se esperava de um Presidente: detectei as sacanagens e arranquei do Clube uma por uma. Fiz inimizades, fui ameaçado, passei a ser achincalhado por ex-funcionários nas redes sociais. Conheço o rosto e a voz de cada um desses inimigos. Não arredei um milímetro do meu propósito.

Até pelas circunstâncias da época da publicação, Campello pouco escreveu sobre outros aspectos da administração. O dirigente fez mudanças no funcionamento do clube, apoiado pela consultoria da KPMG e pela auditoria da BDO. Mas também causou estragos.

Esportivamente, o rebaixamento para a Série B foi o desfecho do mandato. Financeiramente, salários atrasados e dívidas cobradas a todo momento foram constantes. Neste texto, o ge passa pelo balanço financeiro cruzmaltino referente a 2020 para clarear os problemas.

Panorama

A comparação entre faturamento (tudo o que foi arrecadado em cada temporada) e endividamento (o que havia a pagar no último dia de cada exercício) mostra um clube em crise severa e crônica.

As dívidas são 4,5 vezes maiores do que a arrecadação. Ninguém precisa ser especialista em finanças para entrar em desespero. Se fosse uma empresa, o clube provavelmente já teria tido a sua falência decretada.

Tratando especificamente da administração de Campello, que durou entre 2018 e 2020, o dirigente até chegou a esboçar uma reação no primeiro ano, mas logo os números pioraram muito.

Receitas

Ao analisar a arrecadação no detalhe, quase todos os clubes exigiram deste blog, na série sobre finanças, a explicação sobre receitas de televisão que foram postergadas para o ano que vem.

Como o Campeonato Brasileiro de 2020 só terminou em 2021, a parte vinculada à posição na tabela, que só foi confirmada em fevereiro, aparecerá no balanço referente à temporada seguinte.

No caso do Vasco, isto faz pouca diferença. Rebaixado para a segunda divisão, o clube não fez jus a nenhuma premiação. Zero. Então, de qualquer jeito, a receita com transmissão cairia muito.

Na Série B, em 2021, essa entrada de dinheiro reduz ainda mais. Em vez de R$ 55 milhões arrecadados na primeira divisão, o segundo escalão proporcionará apenas a receita com pay-per-view, que é variável. É provável que fique por volta de R$ 20 milhões em 2021.

Os direitos de transmissão também dependem do futebol dentro de campo. "Premiações" da Copa do Brasil são contabilizadas nessa linha. O Vasco precisa ir mais longe no campeonato se quiser elevar essa receita.

No campeonato estadual, um erro estratégico de Campello. O presidente esteve ao lado do Flamengo na disputa comercial contra a Globo. Acabou tendo seu contrato rescindido, posteriormente com um acordo para encerrar ação judicial mediante perdão de dívida de R$ 15 milhões do clube com a emissora. O dirigente sacrificou receitas futuras.

Em outros departamentos, as receitas são insuficientes para as necessidades do Vasco. A área comercial e de marketing, com patrocínios e licenciamentos, gerou menos dinheiro do que o clube fazia no início da década de 2010. Apesar da chegada de parceiros novos.

Nas bilheterias, houve o impacto da pandemia do coronavírus. Com São Januário fechado para o público, a associação passou de R$ 16 milhões arrecadados com ingressos em 2019 para menos de R$ 3 milhões em 2020. Um impacto imprevisível e comum a todos os clubes.

Nas associações, está o ponto forte do período em que o Vasco teve Campello na presidência. A receita foi multiplicada em várias vezes com a chegada de mais de 170 mil sócios novos. Chegou a R$ 33 milhões em 2020. O problema é que ela precisaria ser ainda maior.

A mesma lógica vale para transferências de atletas. O clube não tem bom histórico nas vendas, então melhorou. Mas os R$ 25 milhões obtidos na temporada passada estão abaixo do que a diretoria previa, abaixo do que as contas exigiam, enfim, aquém da expectativa e da necessidade.

Orçado versus realizado

Outra maneira de avaliar uma administração está na comparação entre orçamento (com projeções feitas pela diretoria antes de a temporada começar) e balanço (que registra os resultados efetivamente alcançados). No Vasco, em referência a 2020, esse paralelo é trágico.

A organização financeira, na gestão Campello, ficava sob a responsabilidade de Adriano Mendes, então vice-presidente de controladoria, que acabaria rompendo com o cartola no último ano de sua administração. Adriano hoje participa da administração de Salgado.

A proposta era razoavelmente simples. O Vasco precisaria elevar consideravelmente suas receitas e segurar os gastos num patamar baixo. O superavit (lucro) gerado nesse processo, em termos contábeis, seria usado para reduzir o endividamento cruzmaltino.

Na prática, o primeiro problema apareceu na arrecadação. Todas as fontes ficaram muito abaixo do que era esperado pela diretoria para a temporada. Em vez de arrecadar R$ 322 milhões, conforme orçamento, o clube ficou com apenas R$ 183 milhões. Faltou muito dinheiro.

Entre as despesas, o blog destaca a folha salarial: combinação de salários, encargos trabalhistas, direitos de imagem e de arena. Tudo o que compõe a remuneração do departamento de futebol.

A direção havia proposto uma redução considerável da folha, para R$ 58 milhões no ano, o que deixaria o clube com uma das menores da primeira divisão. Na prática, gastou R$ 76 milhões.

Importante pontuar que, em 2019, essa folha havia sido de R$ 94 milhões. Ou seja, o Vasco realmente reduziu seu maior gasto em 2020, mas ficou distante do que pretendia em orçamento.

No resultado financeiro, aparecem despesas bancárias, juros sobre dívidas e atualizações sobre impostos e parcelamentos. Como está super endividada há muitos anos, a associação acaba desperdiçando uma quantidade considerável de dinheiro nessa linha.

E no resultado líquido, que deveria ser de R$ 152 milhões positivos, um superavit (lucro), voltou com um número ridiculamente pior. Algo que se explica por todas essas frustrações no ano, entre receitas e despesas.

Dívidas

As contas operacionais no vermelho e os juros sobre dívidas de muito tempo agravam o endividamento. E esta análise fica pior quando o número bruto, acima dos R$ 830 milhões, é compreendido no detalhe.

Ao término de 2020, o Vasco tinha R$ 311 milhões a pagar no curto prazo, ou seja, em menos de um ano. Essas são as dívidas que estão sendo cobradas da gestão de Salgado no decorrer de 2021.

Neste montante, elas são impossíveis de pagar dentro do vencimento. Mesmo que o clube ainda tivesse a arrecadação da primeira divisão, não haveria dinheiro nem para metade disso. Quem dirá na Série B.

Em teoria, o Vasco poderia levantar empréstimos bancários para cobrir momentaneamente os buracos. Esse crédito, logicamente, depois viraria dívida, mas pelo menos as pendências seriam acertadas.

Na realidade, essa saída não existe. É importante lembrar que empréstimos têm contratos dados como garantia de pagamento, então funcionam como antecipações de receitas. Quando Campello chegou à presidência, Eurico Miranda já tinha antecipado quase tudo. E o próprio Campello fez novos adiantamentos por meio desses créditos.

Este era o quadro de empréstimos em 30 de dezembro:

R$ 999 mil para Bradesco (a pagar em 2021)

R$ 5,6 milhões para BMG (a pagar em 2021)

R$ 72 milhões para BMG (a pagar de 2022 em diante)

R$ 13 milhões para Banco Safra (a pagar em 2021)

R$ 20 milhões para Globo (a pagar em 2021)

R$ 7,6 milhões para Jorge Salgado (a pagar em 2021)

Salgado emprestou o valor descrito acima muitos anos atrás: parte em 2013, outra parte em 2020. Depois de assumir a presidência, o cartola estendeu o prazo para pagamento até janeiro de 2023. Além disso, ele tem emprestado mais dinheiro do bolso para quitar urgências.

Essas dívidas bancárias respondem por apenas 12% do endividamento total. O grande problema para o Vasco está na área trabalhista, que contabiliza salários e encargos correntes em atraso, mas principalmente quantias que vêm sendo cobradas judicialmente por ex-atletas.

Neste ponto, o balanço de 2020 trouxe uma surpresa ao torcedor. No documento, foram incluídos R$ 119 milhões em dívidas trabalhistas que a direção do Vasco não conhecia (clique no link para entender).

Este é o quadro de dívidas trabalhistas:

Obrigações trabalhistas (salários e encargos)

R$ 56 milhões em 2019 (a pagar em 2020)

R$ 78,5 milhões em 2020 (a pagar em 2021)

Acordos cíveis e trabalhistas (curto prazo)

R$ 44 milhões em 2019 (a pagar em 2020)

R$ 56,5 milhões em 2020 (a pagar em 2021)

Acordos cíveis e trabalhistas (longo prazo)

R$ 25 milhões em 2019 (a pagar de 2021 em diante)

R$ 13 milhões em 2020 (a pagar de 2022 em diante)

Ações judiciais cíveis e trabalhistas

R$ 182 milhões em 2019 (a pagar de 2021 em diante)

R$ 108 milhões em 2020 (a pagar de 2022 em diante)

Os números acima contam a seguinte história. O Vasco não tem conseguido pagar suas despesas correntes, demonstradas nas obrigações trabalhistas, e vai empilhando as dívidas ano a ano.

Acordos são feitos para aliviar, de certa forma, as ações movidas na justiça. Mas são acordos que a direção do clube fatalmente não conseguirá cumprir. Pois não há dinheiro para todos eles.

Na justiça, por fim, estão valores que o departamento jurídico calcula que o Vasco precisará desembolsar. Eles dependem de decisão judicial e da execução para efetivamente saírem do caixa. Costuma demorar. Mas a conta chega. Normalmente, na forma de penhoras e bloqueios.

Houve uma redução nos valores contabilizados no balanço nesta parte judicial, mas vá com calma. Existem processos que o jurídico acredita que o Vasco possa ganhar, e que por este motivo não foram colocados no passivo. Falaremos deles daqui a pouco para entender a complicação.

E ainda não é o fim. O Vasco tem uma carga pesada de impostos não pagos no passado, parcelados pelo governo federal em programas de refinanciamento – o principal deles, o Profut. No gráfico abaixo, esses parcelamentos aparecem como um endividamento "fiscal".

Geralmente, a dívida fiscal não é problemática. Basta pagar as mensalidades, e não há motivo para dor de cabeça. O problema é que, aqui, esse compromisso é tão alto que gera uma exigência mensal alta. Segundo levantamento recente do blog, R$ 1,4 milhão por mês.

Em "outros", há dívidas com fornecedores e entidades esportivas, como adversários dos quais o Vasco comprou jogadores. Como está estrangulado financeiramente há muito tempo, o clube acaba não adquirindo os direitos federativos, apenas buscando atletas livres.

Dívidas não provisionadas

O Vasco tem ações judiciais (cíveis e trabalhistas) movidas contra ele em andamento. Em cada balanço, a diretoria determina a probabilidade de perda nesses processos segundo as nomenclaturas:

"Provável"

"Possível"

Apenas os valores de perdas "prováveis" são inseridos no passivo e consequentemente no endividamento demonstrado nos gráficos anteriores. Além deles, o Vasco possui R$ 41 milhões em processos em que seu departamento jurídico considera a derrota apenas "possível". Isso significa que o endividamento pode ficar ainda maior.

Futuro

O rebaixamento não aconteceu por acaso. E os resultados ruins em 2021, com o meio da tabela na Série B, também não. O vascaíno vê em campo a materialização de uma crise antiga e interminável.

Alexandre Campello teve um bom início de administração, com as contas começando a entrar no lugar em 2018. Só aconteceu por causa da venda de Paulinho para o Bayer Leverkusen, uma receita extraordinária – tanto como sinônimo para "excelente", quanto na sua conotação mais simples: atípica, não recorrente, que não se repete.

O Vasco não conseguiu emplacar vendas de atletas com quantias relevantes, além dessa. Nem cumpriu as projeções que colocou para si mesmo nas outras fontes de arrecadação. Problema número um.

Em termos de gestão do departamento de futebol, o clube opera com uma folha salarial menor do que as de Athletico-PR, Red Bull Bragantino e Bahia. Com o diferencial de que, endividado, não consegue sequer manter os salários em dia. Os tempos de gigantismo ficaram no passado.

Ainda por cima, a aplicação desses recursos foi ineficiente. Mesmo precisando fazer reduções, o Vasco tinha uma folha adequada para ficar na Série A. Assim como tem elenco caro suficiente para se sair bem na Série B. Gasta pouco e gasta mal. Problema número dois.

Da porta para dentro, é verdade que Campello conseguiu melhorar um pouco a administração em termos de organização e processos. A qualidade do balanço financeiro melhorou, por exemplo. A auditoria externa da BDO torna o documento mais confiável do que no passado.

Mesmo assim, o balanço referente a 2020 mostrou ao vascaíno que pode haver ainda mais sujeira debaixo do tapete. Quando quase R$ 120 milhões em dívidas trabalhistas "desconhecidas" pela própria gestão surgem repentinamente, esta é a prova de que a bagunça persiste.

Enquanto o Vasco não conseguir mostrar ao mercado que passou um pente-fino definitivo em suas dívidas, que todos os esqueletos foram expostos, será difícil aparentar credibilidade. Problema número três.

As dívidas em si são assustadoras. O clube não tem crédito no mercado financeiro para buscar empréstimos, e não tem condições de honrar os acordos que faz com credores variados. O Vasco sobrevive com receitas ocasionais (as que não foram antecipadas) e dinheiro do presidente.

Anotar que o time precisa conseguir a promoção para a primeira divisão é uma obviedade. Que precisa ser registrada, de qualquer modo. A maneira mais rápida de elevar receitas e melhorar a capacidade de pagar dívidas é a volta ao Campeonato Brasileiro, com mais do que o dobro a receber em televisão. Mas precisa chegar lá. E logo.

@rodrigocapelo

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Fonte: Globo Esporte