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Fernando Miguel comenta fase difícil do Vasco: "Processo dolorido"

"É um processo dolorido, porque todos sabem das dificuldades financeiras que temos, dos atrasos salariais. E isso acaba refletindo não só na gente, mas nas nossas famílias, nas pessoas que dependem da gente. Mas mesmo assim precisamos querer estar nesse momento no Vasco. Precisamos querer fazer parte disso."

É essa a lúcida e sincera opinião do capitão Fernando Miguel sobre o momento do Vasco.

Fora da zona de rebaixamento do Campeonato Brasileiro por um ponto, o Cruz-Maltino tenta, também fora de campo, se reerguer - trocar o pneu com o carro andando, como diz o ditado popular. O elenco tem, atualmente, um mês de salário (CLT) e um de direitos de imagem atrasados.

Cabe a Fernando Miguel, 34 anos, carregar a braçadeira de capitão do Vasco num momento de reestruturação. Com passagens por 11 clubes, o goleiro titular do Cruz-Maltino tem bagagem suficiente, não só como jogador, para dizer com propriedade que o título que essa geração pode conquistar não é palpável, mas de ficar na história por ter feito parte de um momento de virada de chave.
 

- Talvez hoje a gente não vá ser reconhecido por um grande título, mas o reconhecimento por esse trabalho e essa entrega, essa lealdade, também vai render frutos. O importante nisso tudo é querer fazer parte - completa.

 

Os principais troféus da vida de Fernando Miguel, inclusive, também não são palpáveis - e são esses que mais orgulham o goleiro. No álbum de fotos, tem as conquistas do Campeonato Baiano (2016 e 2017) e da Copa Federação Gaúcha de Futebol (2012). Faltaria, por exemplo, um Campeonato Brasileiro, uma Copa do Brasil... Mas isso está bem longe de ser um problema ou tirar o sono do experiente goleiro. O maior título para o pai de duas meninas, de dois e oito anos, é o caráter.

- Eu sou um cara muito agradecido por tudo. Eu trabalho muito. Tenho muito sonho ainda. Muito objetivo para alcançar. E tenho muita disposição e vigor para chegar até eles ainda, mas se minha história se encerrasse aqui hoje eu falaria para ti que eu seria um atleta realizado. Porque a história que eu trilhei, o caminho que eu trilhei, é um bom caminho. Um caminho da verdade, lealdade, parceria, crescimento, avanço com o que você faz as coisas. O restante é o resultado de tudo isso. Tenho vivido bons momentos, marcantes. Aqui no Vasco não tem sido diferente - relembra.
 

- Graças a Deus tenho uma família que ajuda muito, uma esposa equilibrada. Tenho uma esposa que me ajuda muito. Tentamos passar isso para as nossas filhas. A gente entende que é o fundamental para avançar na vida. Sem equilíbrio, sem convicção, a gente não vai a lugar algum.

Satisfeito com o que tem, mas com uma "gula" por mais, Fernando Miguel tem, há oito anos, mais motivos para não desistir em momentos difíceis, manter o equilíbrio diante dos problemas e não abrir mão de princípios. Os sonhos, ele prefere deixar em segredo.

- Sonho a gente não conta, não sai espalhando por aí. Mas ao mesmo tempo que tenho muitos sonhos, tenho os pés muito bem plantados no chão. E convicto de que preciso trabalhar bem todos os dias da minha vida, para que eu consiga ter o dia de amanhã melhor do que foi hoje. É assim que eu vou continuar levando minha vida, minha profissão, e é assim que eu quero ser visto pelas minhas filhas, uma de oito e uma de dois anos. Como um pai que não desiste. Quero que minhas filhas me vejam um pai que não desiste. Só isso.
 

Veja, abaixo, todo o papo com Fernando Miguel no hotel em que o Vasco está concentrado em Foz do Iguaçu, de olho na reta final do Campeonato Brasileiro. Durante a conversa, o goleiro do Cruz-Maltino falou sobre princípios, perfil, estudos e futuro:

GloboEsporte.com: Você chegou a ser capitão no ano passado?

Fernando Miguel: No ano passado não fui capitão, agora com o Luxemburgo que virei. Já tinha sido capitão no Vitória, no Juventude. Mas isso é algo que anda paralelo com eu dia a dia. O grande capitão desse barco hoje é o Vanderlei. Tem muitos atletas com capacidade e essa característica de carregar a braçadeira hoje aqui.

Mas a braçadeira, em si, o acessório, muda muita coisa no dia a dia?

- Depende. Para mim, não muda. Não deixo de ter meus posicionamentos independentemente de carregar a braçadeira ou não. A nossa função como atleta é ser leal, ser verdadeiro e ser comprometido com os projetos do clube. Para a condição de capitão, tem muitos líderes no clube. Ela cai bem em muitos atletas.
 

Conversando com você, você parece ser muito claro com o que fala. Estávamos conversando sobre diversos assuntos antes da entrevista. Você se vê como um cara diferente no mundo do futebol?

- Acho que cada um tem seu perfil de vida, seu estilo de vida. Eu tenho o meu. Sou muito claro nas minhas posições, nas minhas colocações. Não tenho nenhum tipo de problema com isso. Quando tenho de dar minha opinião, dou com equilíbrio, tranquilidade, sempre colocando o contexto principal, que é o coletivo, à frente.

- É assim que a gente consegue algo no futebol. O futebol é o um esporte coletivo. Me vejo como uma pessoa equilibrada, sim. Às vezes dou minhas cabeçadas, meus erros, e não tenho medo de admitir. Não me vejo muito diferente, não. Só com minhas características próprias.

E como você se tornou essa pessoa equilibrada? Foi durante a vida, algo natural...

- As experiências de vida. Acredito que a vida vai te trazendo maturidade, amadurecendo os pontos de vista, aquilo que você julga ser importante, aquilo que a gente julga ser supérfluo. E também os relacionamentos.

- Graças a Deus tenho uma família que ajuda muito, uma esposa equilibrada. Tenho uma esposa que me ajuda muito. Tentamos passar isso para as nossas filhas. A gente entende que é o fundamental para avançar na vida. Sem equilíbrio, sem convicção, a gente não vai a lugar algum.

Você fala super bem, se aprofunda nos assuntos. Você estudou, concluiu curso superior?

- Algumas pessoas já falaram que eu era formado em universidade, mas não. Terminei o ensino médio, na minha cidade mesmo, depois que completei eu acabei não investindo mais. É algo que me traz arrependimento hoje. Estou batalhando agora, porque estou com 34 anos e a gente já começa a vislumbrar algumas outras coisas. Vejo que sem conhecimento a gente não vai a lugar algum. É algo que eu tenho buscado na minha vida. A formação acadêmica no ensino superior.

Mas você acha que não avançou nisso por falta de tempo, por causa da rotina, ou porque quando teve oportunidade...

- É desleixo. Porque hoje em dia há muitos mecanismos para aprender, para você se formar, adquirir conhecimento. Hoje em dia, as mídias, a internet te trazem essa facilidade. Ao mesmo tempo que não temos tempo, temos muito tempo. Temos tempos ociosos em concentração, viagens. É um período em que você pode estudar.

- Tem as ferramentas digitais que você pode fazer a faculdade online. Você não tem mais a necessidade de ter aula presencial. Às vezes é um pouco de desleixo do atleta mesmo. Digo, não do atleta, do meu caso mesmo. É algo que eu preciso me policiar e buscar. Vai do querer de cada um. Sinto que faz muita falta para mim.

Como você começou a falar tão bem assim e, além disso, mostrar conhecimento de vida mesmo, de assuntos como política?

- Gosto de ler tudo. Ao mesmo tempo que não tenho formação acadêmica, tenho vontade de aprender, buscar conhecimento, me relacionar com pessoas que entendem. Eu não sou o dono da verdade, eu procuro aprender sobre algumas verdades. A pessoa que tem essa vontade de aprender, buscar, vai aprender. Tenho o hábito de ler bastante.

O que você gosta de ler?

- Leio muitas coisas. Sobre esportes, religiões, procuro estar atento a tudo. A política hoje é algo que ferve no nosso país, procuro estar observando à distância, observo alguns movimentos. Sou um cara que procuro estar atento a tudo, principalmente no esporte. Busco informações, conhecimentos, métodos, o que tem avançado, o que tem de novidade no mundo todo. Tem muita ferramenta. Tento aprender em todas as partes.

O que você acha do momento atual do esporte?

- Eu me sinto confortável para falar do nosso contexto no brasil, que é onde estamos inseridos, onde vivemos e onde notamos os avanços. Vejo muitos avanços no que a gente faz. Vejo o futebol brasileiro melhorando muito. Existe um equilíbrio muito grande em todas as equipes.

- Existe um poderio financeiro que torna algumas equipes mais potentes, mas você vê que naquilo que se prega existe um equilíbrio muito grande. Vejo o futebol brasileiro andando bem, uma forma profissional muito exigente. Hoje o atleta não pode ser só jogador de futebol. Precisa ser atleta no sentido da palavra mesmo. Vejo uma boa melhora e caminhando no caminho certo.
 

A gente vive numa realidade na Série A que não é a realidade do futebol brasileiro. A grande maioria vive num mundo muito diferente desse que conhecemos. Você acha que o futebol brasileiro caminhe para um equilíbrio?

- Os percentuais na questão financeira são gritantes ainda. Existe muita diferença. Mas quando vamos olhar pela implementação dos trabalhos, de ideias, acredito que já chegue a equipes com menos capacidades também. E estão melhorando.

- Vejo de uma forma não muito boa a ideia do fim dos estaduais. Eu sou fruto deles, consegui chegar nas grandes equipes através dos regionais, porque não tive espaço no Grêmio quando estive lá. Porque se implementou muito trabalho sério. As pessoas sabem fazer o futebol melhor. E eu vou estar sempre apoiando os profissionais com esse tipo de visão de fazer nosso futebol cada vez melhor.

Fala-se muito do calendário do futebol brasileiro, que tem muitos jogos. Qual sua opinião sobre isso?

- Acho que o calendário é apertado, sim, mas talvez o que muda é como a gente vê cada campeonato. Enquanto na Europa você vê uma equipe jogando um campeonato com uma equipe principal e a Copa do Rei, outras copas, com um time diferente, se mescla, e a pressão e a cobrança são diferente o que aqui no Brasil.

- Falando por nós. Tivemos um momento de oscilação muito grande na reta final do Carioca e fomos muito cobrados por isso. Causou a eliminação também na Copa do Brasil, em que oscilamos contra o Santos e não recuperamos. Jogamos com a mesma equipe. A cobrança em cima de cada campeonato aqui no Brasil é diferente da cobrança na Europa. Não sei a diferença de jogos do Brasil para a Europa. Mas não é muito significante.

- Acho que o que mais complica no nosso pais é o tamanho, os deslocamentos. Isso gera desgaste. E querendo ou não tem mudanças de rendimento. Joga quarta aqui no Rio Grande do Sul, domingo no Rio de Janeiro, na outra quarta no nordeste. Tem uma queda de rendimento físico.

- Por mais que falem que só viajamos, descansamos em bons hotéis, tem toda uma orientações para fazer esse descanso, o corpo sente. O rendimento muda. Vejo como um momento de ajustes, também. Acredito que um trabalho bem feito, equilibrado, faz com que não se sinta tanto. Acho que o futebol brasileiro se equilibra ao que pode.

Você acha que há uma cobrança exagerada no futebol brasileiro?

- Ela é proporcional àquilo que é histórico. Não é algo que é de hoje, não algo que nasceu há pouco tempo. Futebol brasileiro sempre foi assim. Cada cultura tem sua peculiaridade. E no Brasil tem a de se cobrar bastante. Temos de entender isso e trazer equilíbrio para a gente. A cobrança sempre vai existir. O importante mesmo é estarmos convictos do trabalho que vai ser feito, das ideias que são implementadas e da forma como vai ser conduzido esse processo todo. Você vê equipes bem estruturadas e bem organizadas nesse sentido que não sentem tanto. Cabe às outras andar nessa linha.

Você acha que o Vasco, neste processo de evolução, está no caminho certo?

- Bom, cheguei há um ano e três meses aqui. Cheguei num momento e depois de um ano nos vejo num outro momento. O que se prega hoje, o que o presidente prega, é reestruturação, austeridade, ajuste de contas, investimento em estrutura e vejo isso com bons olhos. Vejo o Vasco crescendo e me sinto feliz por fazer parte desse processo.
 

Você se sente parte desse processo?

- Com certeza. Acho que o atleta precisa se sentir assim para fazer com que as coisas aconteçam. Para que as coisas deem certo os atletas precisam querer fazer parte do processo. É um processo dolorido, porque todos sabem das dificuldades financeiras que temos, dos atrasos salariais. E isso acaba refletindo não só na gente, mas nas nossas famílias, nas pessoas que dependem da gente.

- Mas mesmo assim precisamos querer estar nesse momento no Vasco. Precisamos querer fazer parte disso. Talvez hoje a gente não vá ser reconhecido por um grande título, mas o reconhecimento por esse trabalho e essa entrega, essa lealdade, também vai render frutos. O importante nisso tudo é querer fazer parte.
 

Acompanho muitos seus treinos e é normal às vezes ter uma brincadeira ou outra, mas você é um cara muito sério...

- Eu não sou o cara da resenha. Eu sou um cara mais reservado, sim, mas não deixo de brincar e dar risada. Tem uns caras que são mais engraçados. Até brinco que quando tem media day e me escalam, eu falo que não vão conseguir arrancar muita palhaçada de mim, não, porque não é o meu perfil. Meu perfil é mais centrado, mais tranquilo, reservado. Mas não deixo de ter meu momento de concentração no grupo. É saudável a gente rir também.

As pessoas que têm sucesso costumam se espelhar em outras pessoas que também têm sucesso. Você se espelha em alguém, tem algum norte? Não só jogador...

- Não sou um cara que tem aquele cara para quem eu olho e digo que quero ser. Eu sou um cara muito grato a Deus por todas as pessoas que se inseriram na minha vida. Num ambiente profissional, num ambiente privado de família. Sugo muito conhecimento, muita energia boa que me potencializa.

- No esporte mesmo tem o Taffarel, via muito o Danrlei se transformar em clássicos. Crescia de forma absurda. Via muito o Rogério Ceni, que mudou o comportamento do goleiro, a forma do goleiro brasileiro jogar. Via muito Carlos Germano. Uma figura ímpar dentro do clube, com muitos títulos. Hoje, convivendo com ele, vejo porque conquistou o que conquistou. Um cara super sério, comprometido, leal ao clube. Leal às causas que comprava. Ao mesmo tempo, super simples na forma de viver, uma vida muito tranquila, equilibrada.
 

- Tenho muitas pessoas que sempre me ajudaram. Tenho uma família, um pai e uma mãe muito dedicados, que sempre nos deram muitas boas instruções. Sempre foram grandes exemplos de conduta, de como levar a vida, por mais humilde que fosse. Se cheguei até aqui foi porque tive uma base familiar muito boa.

Como foi sua infância?

- Eu me emociono. Acho que qualquer um quando olha para trás se emociona, porque o caminho para chegar até aqui é árduo. Mas as pessoas que marcam, a gente precisa lembrar. Muitas pessoas costumam lembrar de momento difícil, o cara que sacaneou, quem se levantou para tentar te impedir. Mas quando olho para trás vejo uma história bonita. Apesar de não ter uma história de mega títulos no Brasil, uma história de conquistas, eu tenho orgulho da minha história. Por onde passei conquistei amigos e o respeito de muitos. Se eu cheguei onde cheguei, devo muito a essas pessoas, a esses amigos, e ao meu pai e minha mãe.

Fonte: (ge)