Ex-árbitro revela pedido inusitado do ex-presidente Eurico Miranda
A fala mansa não chega a remeter ao lado mais extrovertido. Um longo bate-papo, porém, mostra que Luiz Carlos Gonçalves, o Cabelada, tem muita história para contar. O ex-árbitro de futebol, hoje com 66 anos, ainda guarda gás para levar a vida repleta de brincadeiras. Há 14 anos morando em Búzios, no Rio de Janeiro, costuma percorrer cerca de 170 quilômetros para escapar para Vila Isabel quando dá. Lá, encontra amigos, frequenta botequins e não dispensa a cerveja bem gelada. É assim, e tem sido desde a época em que ainda apitava jogos. Passados 20 anos da aposentadoria, ele recorda histórias que ficaram guardadas na memória no período em que chegou a participar de mais de 400 partidas, a maioria no Campeonato Carioca. Como bom boêmio, também mostra sua maneira de conduzir situações no mundo do futebol antes mesmo de a bola rolar.
Foi o caso de um Vasco x Cruzeiro em 1994. Em 22 de maio, a partida terminou empatada por 0 a 0, e a história é no mínimo inusitada.
- Fui apitar o jogo, entrega das faixas, e cruzei com o Eurico (Miranda, ex-presidente do Vasco). Era um jogo de festa. Ele falou: “Vai marcar um pênalti?” Eu respondi: “Fica tranquilo.” Começou a partida, e logo marquei pênalti. Derrubaram o William. O Yan bateu para um lado, e o goleiro (Dida) caiu e defendeu. O Eurico estava no banco de reservas, fui lá e falei assim: “Meu diretor, não lhe devo mais nada.” Finalizei, e o jogo acabou 0 a 0. Temos um relacionamento muito bom - disse o ex-árbitro.
Com a mesma convicção com que bate no peito para dizer que é vascaíno, Cabelada garante que houve o pênalti de fato no lance. A versão do “Jornal do Brasil” sobre o amistoso foi um pouco diferente. Na matéria do dia 23 de maio de 1994, o texto diz: “O juiz Luiz Carlos Gonçalves, o barrigudo Cabelada, fez questão de marcar uma falta inexistente de Zelão em William, logo aos 2 minutos”.
Eurico paga a conta
Em alguns papéis amarelados e desgastados com o tempo, Cabelada guarda a anotação dos jogos que apitou. Vai lendo cada linha e lembra das mais variadas histórias. Não acha o registro desta partida em que o resultado de 0 a 0 não valeu ponto para nenhuma competição: era o amistoso da entrega das faixas após o título do Campeonato Carioca de 1994 conquistado pelo seu time de coração. Mas a relação com o Vasco e com o ex-presidente do clube nem sempre foi tão amistosa.
- Teve um Vasco x Olaria numa quarta-feira à noite. Tinha show do Roberto Carlos no Canecão. Falei para a minha esposa que ia para o jogo e, quando voltasse, ia parar para tomar um chope e depois ligaria para ela. O jogo foi 1 a 1. O Vasco perdeu muito gol, com o Mauricinho e o próprio Roberto Dinamite. Ele (Eurico Miranda) correu para o vestiário, invadiu e falou: “Você não apita mais jogo do Vasco. Que vascaíno é você que só f... a gente, só prejudica a gente?” Aí acabou o jogo, acabou o show, e falei com a minha mulher: “Vamos jantar”. Eu ia no Leblon, no Plataforma, mas disse: “Não vamos, que ali é reduto do Vasco. Quando o time joga, a diretoria vai lá jantar”. Aí tinha inaugurado um restaurante novo, e eu fui. Quando entrei, na primeira mesa estava o Eurico e todo mundo do Vasco. Entrei e cumprimentei. Ele me olhou com aquela cara, aí fui sentar. Fiquei lá com meu chope, e, quando fui pagar a conta, ele já tinha pago. Ele era estourado, mas uma pessoa boa - defende.
Confusão e briga
Por incrível que pareça, Cabelada - apelido que ganhou na infância pelos longos cabelos - já chegou até a ser chamado de flamenguista. Ele defende-se dizendo que jamais beneficiou o Rubro-Negro, mas algumas marcações foram questionadas. É o caso de uma em agosto de 1982, durante o Estadual daquele ano. O árbitro deu acréscimo, e a partida entre Flamengo e Bonsucesso, que se encaminhava para o empate por 2 a 2, teve um lance polêmico que acabou mudando o rumo do resultado para 3 a 2 a favor do Fla.
O ex-árbitro diz que a bola entrou, apesar de ela ter terminado fora do gol. Na época, não foi o que considerou o representante do Bonsucesso Nilton Bitar. O dirigente chegou a pedir a anulação do jogo no Tribunal de Justiça Desportiva (TJD-RJ) por erro de direito, sem que o árbitro tivesse registrado na súmula algum erro. Cabelada, assim como fez na época, nega qualquer equívoco.
- O Bonsucesso tinha o mando de campo, mas não podia jogar em Teixeira de Castro e levou para o campo do Bangu. O Flamengo tinha o escrete com Andrade, Leandro, Zico... E virou o primeiro tempo 2 a 1 para o Bonsucesso. Aí voltaram para o segundo tempo, o jogo duro, e o Flamengo empatou. Naquela época, quando o time de menor investimento retardava a partida, eu ia até 49, 50 minutos. E saiu aos 49 o gol do Adílio. A bola bateu na rede e saiu. Na posição que eu estava, deu para me certificar de que a bola entrou. Foi um jogo difícil, me cercaram... - conta.
Não foi só essa vez que ele foi cercado em campo. E de novo por um lance em uma partida com o Flamengo. Aconteceu na vitória rubro-negra por 1 a 0 sobre o Volta Redonda, gol de Bebeto, em 1985, no Raulino de Oliveira. Por não ter marcado um pênalti para os donos da casa, o que o “Jornal do Brasil” da época tratou como “escandaloso”, um funcionário da Siderúrgica o agrediu na saída do campo. Em defesa, houve revide, e eles pararam na delegacia. Na saída do posto policial, escoltado, viu a violência seguir. Uma pedra foi arremessada e quase atingiu o auxiliar Édson Costa.
- É isso que dá. A gente fica tenso num jogo como esse, é agredido e ainda entra em cana - falou Cabelada na época.
Hoje em dia, volta a se defender ao dizer que a infração não aconteceu.
- Um jogador botou na frente e caiu. Eu mandei seguir, e o clima ficou tenso. Aí entrou um torcedor (Maurício Diogo, do Volta Redonda) que eu conhecia e me agrediu. Eu revidei, e fomos para a delegacia. Mas depois disso ficou tudo bem, sentamos juntos e tomamos uma cerveja.
Cerveja e carne de sol
É quase impossível não pronunciar o nome do ex-árbitro sem falar ao mesmo tempo a palavra cerveja ao contar suas histórias. Até quando o Central, de Pernambuco, conquistou uma importante vitória no torneio equivalente à Série B de 1986 ao vencer o Catuense por 1 a 0, em Caruaru, ele tirou uma casquinha. Deu até conselhos.
- Naquele jogo, aos 43 minutos (do segundo tempo), marquei um pênalti contra o Central. Um jogador veio falar comigo e disse que eu era maluco, que se ele marcasse o gol não iriam conseguir sair do estádio. Eu respondi: “Está com medo? Bate para fora.” Ele bateu bem, para marcar, mas a bola foi para fora. E eu fiquei na cidade até o fim de semana, estava aquele clima de festa, carne de sol, cerveja...
A conversa com os atletas era normal. Gaba-se de ter feito muitas amizades, ser procurado pelos jogadores em campo para marcar um chope. E tinha até “bronca”.
- Eu brincava com os jogadores: “Vê lá, hein! Faltam dez minutos e eu quero ir tomar meu chope, vamos jogar bola.” Aí acabava o jogo, e vinha todo mundo me cumprimentar. Tinham algumas reclamações, mas acabava tudo em festa.
Mas a sua maneira de agir acabou em suspensão certa vez.
- Esse lado de boêmio, de samba, botequim, me prejudicou com alguns diretores. O Coronel Áulio Nazareno (ex-presidente da extinta Comissão Brasileira de Arbitragem - Cobraf), quando foi diretor de arbitragem, me suspendeu uma vez. Foi porque um amigo dele, sem maldade, comentou que eu dançava, tomava chope. Aí ele me afastou e disse que minha vida fora do campo não condizia (com a carreira de um árbitro). Eu também disse umas verdades para ele, bati a porta e saí.
Mas ele gosta mesmo é do bom convívio. Tem trânsito livre na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj). Assim que pisa lá, lembra que há mais de 30 anos frequenta o local. Atualmente, além de apitar jogos amadores em campos society, representa dois clubes: o Serra Macaense, da Segunda Divisão do Carioca, e o Sociedade Esportiva de Búzios, da Terceira Divisão. É cumprimentado por todos na federação, pede um tempo para falar com todos e "fazer o oba-oba" rápido.
E, em meio aos compromissos, já com a entrevista perto do fim, toca o telefone de Cabelada. Ele convida a pessoa do outro lado da linha para um encontro. No dia 9 de dezembro, comemorará seu aniversário no Renascença. É uma segunda-feira, dia do Samba do Trabalhador, uma das mais importantes rodas de samba do Rio de Janeiro. Faz o convite com a premissa de “tomar uma”. Frequenta sambas. Diz ser muito bem relacionado. Explica com calma que, apesar da fama, nunca bebeu antes de entrar para apitar um jogo. E quando é divulgada em uma rede social uma foto sua com o copa de água, precisa ouvir brincadeiras.
- Eu sou um cervejeiro conhecido internacionalmente. Assim que postaram a minha foto bebendo água, um amigo comentou: “Cabelada bebendo água...” Criei um estilo de ser lembrado e comentado.
Fonte: geMais lidas
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