Futebol

Especialistas explicam os desafios do futebol após chegada das SAFs

Os valores elevados envolvendo contratações e reforços, além dos altos salários pedidos pelos atletas, especialmente os que vem de fora do país, nunca foram considerados uma surpresa dentro do futebol brasileiro.

Nos últimos anos, no entanto -e especialmente em 2024, esses números foram considerados muito acima da média do mercado, inflacionando e chamando a atenção até mesmo de alguns clubes, como Red Bull Bragantino.

De acordo com informação de bastidores, um fator importante para a crise do time em 2024 foi o nível de investimento. Dirigentes da empresa Red Bull não entendem como 'de repente' ficou tão caro fazer futebol no Brasil. Na visão da marca, de dois anos pra cá, o valor para ter um time competitivo praticamente dobrou.

Um fato comprovado disso é que em agosto deste ano, o Brasil obteve o maior patamar alcançado na elite do futebol brasileiro em reforços, com mais de R$ 2 bilhões gastos. Só na primeira janela, de janeiro de 2024, os números foram de R$ 1,1 bilhão.

Sete clubes ultrapassaram a casa dos 100 milhões de reais neste ano com reforços, sendo quatro deles com modelo SAF: Botafogo (SAF), Flamengo, Palmeiras, Cruzeiro (SAF), Corinthians, Vasco (SAF) e Bahia (SAF).

O Botafogo foi o grande recordista com mais de R$ 323 milhões investidos, o que gerou críticas, por exemplo, do ex-presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, que cobrou regras mais rígidas e fair-play financeiro no país.

Para dirigentes, presidentes de clubes, CEOs e especialistas em gestão e finanças do esporte, alguns fatores contribuiram para essa sensação de inflacionamento do mercado, e um deles está atrelado ao surgimento das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs). Confira a análise de alguns deles:

José Olavo Bisol, vice-presidente de futebol do Internacional

"Sim, de fato os números se elevaram, mas não vejo somente essa questão como preponderante para as dificuldades financeiras que se apresentam. As SAFs não são uma solução em si, até porque existem diversos modelos e ainda precisam ser mais estudadas e compreendidas, basta ver que as que existem no futebol brasileiro, nem todas tem o mesmo resultado. Ao contrário, poucas deram resultado. Como alternativa, é preciso discutir o fair play financeira para que não gere irresponsabilidade nas finanças, conectado ao faturamento do clube. Muito além de olhar para fora, os clubes precisam melhorar suas governanças, inovar na gestão dos ativos, conectar cada vez mais com o torcedor e buscar aumento de receitas. No futebol, sermos mais criativos e efetivos, buscando equilíbrio financeiro e competitivo".

Marcelo Paz, CEO da SAF do Fortaleza

"É indubitável que o futebol brasileiro, nos últimos anos, teve uma escalada de crescimento em todas as linhas de despesa. Salários e comissões mais altas, trânsito elevado de jogadores, clubes usando muito mais logística de voo fretado, equipes de trabalho e comissões técnicas maiores, investimentos grandes na base, e isso dificulta e carece.

Alguns clubes agem um pouco de forma irresponsável, o que inflaciona o mercado. A entrada dos investimentos de SAF também inflacionou, porque é um dinheiro de fora e isso não representou um crescimento da receita dos clubes, e sim um aporte. Esse dinheiro inflacionou o mercado, se tornando um problema, pois essa bolha vai estourar em algum momento, e isso não existe a menor dúvida. Os clubes que querem se manter organizados vão ter dificuldade de competitividade, porque vão concorrer com quem inflacionou e vai ter performance esportiva de curto prazo melhor. Em algumas agremiações a tendência é que isso aconteça de forma mais rápida.

Acho que urge a necessidade de um Fair Play Financeiro, de um controle de gastos de clubes. Se o clube estiver com a dívida não pode seguir contratando, pois o modelo atual causa um desequilíbrio irreal, artificial, e isso não é bom para nenhum mercado".

Yuri Romão, presidente do Sport

"Os valores dos direitos econômicos dos atletas, bem como dos seus salários, explodiram nos últimos anos, dificultando a montagem de elencos. A entrada de recursos externos oriundos, principalmente das SAF’s, e da comercialização dos direitos de transmissão dos campeonatos, realizadas pelas duas Ligas, foram, ao meu ver, os pontos que influenciaram nessa inflação. Para reverter ou mudar esses efeitos, eu acredito que em algum momento o próprio mercado irá se acomodar, havendo uma estabilização dos valores. Mas também será preciso que haja um entendimento entre os dirigentes".

Cristiano Dresch, presidente do Cuiabá

"Tivemos nos últimos anos uma injeção grande de dinheiro, vinda de três fontes: os investidores de SAFs, com muitos grupos estrangeiros entrando no país; o dinheiro das bets, que investiu pesado em patrocínio camisas e placa de publicidade, e também o dinheiro das Ligas. Principalmente em 2023, tivemos uma grande distribuição de dinheiro do investidor, que comprou os direitos da LFU e também da Rede Globo, que antecipou receita para os clubes da Libra. Isso também influenciou muito nos valores de salário e de transferência dentro do Brasil. Ainda assim, eu acho que o futebol brasileiro está caminhando para tentar diminuir essas diferenças que existem entre os grandes e os pequenos/médios. Eu acho que isso é algo que está sendo construído com o passar dos anos. A gente vai ter uma diminuição dessa diferença e um aumento da competitividade".

Fabio Pizzamiglio, presidente do Juventude

"Não há como negar que o futebol está absolutamente inflacionado no Brasil. Não é à toa que tantos atletas com mercado aberto na Europa e no Oriente Médio têm vindo com naturalidade atuar no Brasil. Isso porque os salários se equiparam. Esta realidade é condizente com dez ou 12 clubes no Brasil e, talvez, eles balizem o mercado e atingem diretamente o cenário financeiro do futebol brasileiro. E como esta é uma realidade na qual nem todos os clubes estão inseridos, as dificuldades dos clubes médios e pequenos torna-se ainda maior pela disparidade de poder de investimento. Para minimizar esses efeitos, eu acredito que a criação da Liga vai ajudar neste cenário. Os clubes passarão a receber cotas mais equilibradas entre si. Além disso, os clubes médios e pequenos precisam encontrar em alternativas criativas a captação de mais recursos, principalmente através de seus patrocinadores".

Toninho Cecílio, Diretor Executivo de Futebol do Botafogo S/A de Ribeirão Preto

"Ficou caro fazer futebol no Brasil pela conjunção de três acontecimentos: a legislação e regulamentação das SAF’s, a legislação e regulamentação das empresas de bets, e o surgimento de dois grandes grupos interessados na criação e gestão da Liga Profissional de Futebol no Brasil. Esses três eventos aconteceram juntos e trouxeram organização e fluxo de recursos. Algumas alternativas para para minimizar essa disparidade seriam: investimento em inteligência; antecipação na prospecção de talentos e na leitura dos aspectos que devem mudar o jogo nos próximos anos; incremento no recursos destinados ao departamento de scout, assim como um direcionamento do seu funcionamento, totalmente integrada com a fisolofia do clube; uma gestão diária do executivo junto ao trabalho do treinador e atletas, e por fim a presença constante e correção rápida de desvio de rotas. Com tudo isso, também acho que as Ligas e as SAF’s tendem a tornarem o produto 'futebol brasileiro' em algo mais organizado, mais ético, de melhor qualidade e, portanto, mais atrativo aos patrocinadores".

Thiago Freitas, COO da Roc Nation Sports no Brasil, empresa de entretenimento norte-americana, que gerencia a carreira de centenas de atletas

"O incremento no custo dos salários dos atletas nos clubes da Série A aumenta, gradualmente, em proporção similar ao crescimento do volume de dinheiro disponível neles. Esse volume sempre cresceu por conta do regular incremento das cotas de transmissão, bilheteria e indenizações por transferências de atletas, mas um novo componente gerou mudanças abruptas de dinheiro disponível para vários clubes. A constituição das SAFs não somente viabilizou aportes nunca vistos no país, mas também alterou por completo o custo de administração das dívidas que os clubes tinham, e esses dois vetores aumentaram também o percentual dos orçamentos destinados a salários dos atletas. É um movimento forte, mas não repentino, e que já deveria ter sido antecipado faz alguns anos por quem está a frente dos clubes.

Como alternativa, no curto prazo, as disparidades devem ser reduzidas com maior eficiência, especialmente no departamento que é responsável pela avaliação dos atletas. Seja a avaliação da performance dos que serão contratados, seja dos que integram o elenco do clube, mas fundamentalmente, a avaliação da provável ou potencial performance futura desses. Esse é um mercado em que o percentual de erros de avaliação é ainda absurdo, tanto pela ausência de método, como pela forma passional como várias decisões são tomadas, tanto após derrotas, como vitórias improváveis".

Fernando Lamounier, educador financeiro e diretor da Multimarcas Consórcios

"O aumento no custo do futebol no Brasil é impulsionado por uma combinação de fatores, como a alta competitividade do mercado global, a valorização dos jogadores brasileiros no cenário internacional e a entrada de novos atores financeiros, como as SAFs, que trazem mais dinheiro ao mercado. Isso gerou uma inflação nos salários, direitos de imagem e custos de transferência, especialmente para manter talentos no país. Além disso, a evolução do modelo de gestão em vários clubes aumentou as demandas por infraestrutura moderna, equipes multidisciplinares e investimentos em categorias de base, tornando o futebol mais profissional, porém mais caro.

Outro aspecto é a pressão por resultados imediatos, que leva clubes a gastarem mais do que deveriam em contratações e custos operacionais. Paralelamente, a moeda brasileira desvalorizada frente ao dólar e ao euro torna o Brasil um mercado vulnerável à perda de jogadores e ao aumento de custos para competições internacionais, como Libertadores e Sul-Americana, que são grandes vitrines.

Uma alternativa é o fortalecimento das categorias de base, com maior investimento em formação de jogadores, o que pode reduzir a dependência de contratações caras e criar ativos esportivos valiosos para negociações futuras. Além disso, uma melhor organização coletiva dos clubes, com acordos para evitar guerras salariais e práticas inflacionárias, pode ajudar a equilibrar o mercado interno.

Outro caminho é a diversificação de receitas, ampliando as fontes para além de patrocínios e TV, como exploração de direitos de imagem, programas de sócio-torcedor mais robustos, e até a utilização de novas tecnologias, como NFTs e streaming, para gerar engajamento e monetização. A colaboração entre clubes, ligas e federações para criar um ambiente financeiro mais estável e previsível também é fundamental".

Fonte: Exame.com