Clube

Canais oficiais acendem debate sobre estratégia dos clubes

O Estadual chega à reta final — o primeiro Fla-Flu da decisão é neste domingo, às 16h, no Maracanã — em meio a uma situação inusitada. O interesse sobre quem transmite os confrontos tornou-se maior do que sobre os times. Fruto da Medida Provisória 984, editada em junho, que deu ao mandante das partidas a prerrogativa de comercializar seus direitos de transmissão (a Lei Pelé previa que ela era dos dois adversários).

Em meio a incertezas, alguns clubes exibiram os duelos em seus canais no YouTube. É o que ocorrerá no jogo deste domingo. Após rescisão por parte da TV Globo do contrato de transmissão dos jogos do Carioca — a emissora alegou quebra da exclusividade prevista quando, com base num entendimento próprio da MP, a FlaTV transmitiu o jogo entre Flamengo e Boavista —, o primeiro duelo da decisão poderá ser visto na FluTV. Um protagonismo que rende audiência, mas também joga estas ferramentas no centro de uma discussão sobre qual é o seu papel nas estratégias dos clubes.

Estes canais não são novidade. Entre os quatro grandes do Rio, o mais jovem é o do Flamengo (nasceu em maio de 2012). Num primeiro momento, as plataformas exibiam bastidores de partidas ou de eventos e entrevistas com jogadores ou ídolos do passado. Em diversos períodos, a produção de conteúdo foi terceirizada.

Hoje, com exceção do Flamengo, todo o material é feito por funcionários dos clubes. Além do ganho de qualidade, estas TVs viraram produtoras de audiovisual. Além do YouTube, contas de outras redes sociais, como o Twitter e o Facebook, são alimentadas.

FluTV bate recorde mundial

Foi a exibição dos jogos em vídeo (em áudio já era permitida) que turbinou suas audiências. A FluTV que o diga. A final da Taça Rio, na última quarta, rendeu 3,5 milhões de visualizações simultâneas. É o recorde mundial de exibições ao vivo no YouTube — o posto pertencia a live de abril da cantora de sertanejo Marília Mendonça (3,3 milhões). Desde o anúncio do clássico, o canal atraiu mais 270 mil novos inscritos, sendo 144 mil durante a partida.

A transmissão obteve sete patrocinadores, sendo que um deles não era parceiro antigo do clube. O Fluminense não revela valores, mas diz que foi o suficiente para arcar com os custos da exibição — que envolveu nove profissionais e a contratação de uma empresa para a geração das imagens — e ainda sobrar uma pequena margem de lucro.

Para este domingo, o clube trocou a empresa que cuida da transmissão. Serão 16 câmeras (foram nove na quarta-feira) e mais participações ao vivo. A intenção é investir mais na FluTV. Com ajuda do dinheiro arrecadado com as transmissões e com as visualizações no YouTube, quer adquirir novos equipamentos, inaugurar um estúdio e aumentar o número de funcionários fixos (atualmente são três). Novos programas estão em fase de estudo. Mas transmitir jogos após o Estadual está fora dos planos.

— As TVs de clube não vão substituir as tradicionais. O Fluminense tem uma produtora chamada FluTV, que faz conteúdo regular e está sendo incrementada. Mas produção é uma coisa e canal é outra — diz o diretor de comunicação Ronaldo França: — O torcedor é um cliente. De todas as formas de relacionamento com ele, a produção de vídeos é a mais impactante depois do jogo. Por isso é importante os clubes estruturarem suas produtoras.

FlaTV: projeto atual nasce em 2018

A FlaTV também colhe frutos. Se, antes, sequer tinha uma programação fixa, agora é tratada como principal ativo do clube. Além de usá-la para exibir patrocinadores e se aproximar do torcedor, como faz o Fluminense, o Flamengo quer transmitir jogos.

Quem comanda a FlaTV é Marcelo Gorodicht, através da agência de publicidade X-Tudo, responsável pela campanha que elegeu o atual presidente Rodolfo Landim. Mas o projeto passa pelo vice de comunicação Gustavo Oliveira e pelo vice de relações externas Luiz Eduardo Baptista, além do próprio Landim.

O desejo pela exibição dos jogos já era debatido na gestão anterior, de Eduardo Bandeira de Mello. Em 2018, o clube elaborou um projeto para ser ativado quando houvesse brechas nos contratos de televisionamento. A transmissão das partidas em áudio serviram de teste para a estrutura. A inspiração eram as iniciativas de Athletico e Coritiba em seu Estadual.

O pico do crescimento no YouTube foi na partida contra o Boavista, com 2,2 milhões de visualizações simultâneas. Neste dia, a FlaTV somou mais de 500 mil novas inscrições e se tornou a terceira no ranking mundial, com 5 milhões de inscritos. Mas, há um ano, já se descolava da realidade nacional e superava gigantes europeus como o Manchester United, PSG e Juventus. Procurado pela reportagem, o clube não quis falar.

Os planos de Vasco e Botafogo

Os planos vascaínos também são ambiciosos. O clube, que viu a VascoTV atingir a marcar de 461 mil visualizações simultâneas durante o jogo contra o Madureira, sonha superar as fronteiras do Youtube e criar uma plataforma própria de streaming.

— O nosso planejamento é voltado para, em breve, termos uma distribuição OTT, onde o vascaíno poderá consumir o melhor conteúdo em qualquer lugar a qualquer hora — afirma o diretor de comunicação Mário Vassallo.

A BotafogoTV é a única entre os grandes que não transmitiu uma partida. O vice de comunicação Emílio Adam diz que a produção de vídeos é o coração da pasta, o que ficou ainda mais claro durante a pandemia, quando nem mesmo a imprensa pode acompanhar o dia a dia dos clubes. Mas ele frisa que não há intenção de exibir os jogos do time profissional:

— A Botafogo TV atua nas brechas, faz aquilo que a TV tradicional não mostra: o pré-jogo, o pós-jogo, a coletiva do treinador... Mas a partida em si quem tem contrato conosco é que deve transmitir — explica o dirigente.

Na Espanha, cuidados anti-'clubismo'

A prerrogativa de comercialização do mandante, conferida pela MP, é o modelo mais comum na Europa. Por lá, porém, essa regulamentação não resultou em exibições aleatórias pelos clubes. Na Espanha, por exemplo, os direitos foram vendidos a múltiplos veículos da mídia tradicional. E, para garantir unidade às transmissões, a La Liga fez uma parceria com uma produtora independente. Ela é responsável desde a captação até a distribuição das imagens.

— A transmissão é neutra, sem clubismo. E segue os padrões de transmissão audiovisual preparados pela La Liga, que visa promover de forma igual a imagem de todos os 20 clubes — explicou Albert Castelló, representante global da liga espanhola.

Com isso, as inovações tecnológicas ambicionadas pela liga estão ao alcance de todos os torcedores: transmissões em definição 4k, dezenas de câmeras espalhadas em pontos estratégicos, repetições dos lances em 360 graus, entre outras. Há a preocupação até de buscar uma harmonia entre as cores dos patrocinadores para evitar poluição visual.

Por aqui, a parcialidade das transmissões do Estadual pelas TVs dos clubes repercutiu. Na final da Taça Rio, o apresentador da FluTV não narrou quando o Flamengo teve a bola nos pés. O Fluminense não aprovou o resultado e decidiu que, no jogo de hoje, isso não se repetirá.

Outras funções do streaming

Para Bruno Maia, especialista em inovação e novos negócios do esporte, as narrações especializadas podem ser uma ferramenta interessante, desde que se compreenda que o streaming dos clubes pode ser um complemento às transmissões dos veículos tradicionais, e não uma substituição:

— Você vai no League Pass, da NBA, e tem a possibilidade de ver o jogo com a narração voltada para um time, com um corte na edição voltado para outro. Eles vão diversificando o grafismo, as estatísticas... Isso é uma característica da customização da experiência do usuário. O streaming serve muito para isso, ao contrário das TVs aberta e paga.

Ex-vice de marketing do Vasco, Maia enumera mais duas funções para o serviço de streaming além da customização. Uma delas ?? complementar o que já é oferecido, com bastidores, treinos, entrevistas e jogos de outras modalidades e categorias. A outra é a possibilidade de coletar dados dos torcedores e cruzá-los com os já disponíveis em bancos dados da internet.

— Esse é um mercado no qual os grupos que têm força econômica ainda estão patinando para viabilizar este modelo de negócio. Exibir os jogos dos campeonatos não é a primeira função do streaming — complementa Maia.

Além das discussões técnicas, as transmissões pelos clubes ainda esbarram no aspecto financeiro. Mesmo veículos tradicionais encontram dificuldade de viabilizar seu negócio no streaming. Uma das razões é o fato de os patrocinadores não se mostrarem dispostos a pagar o mesmo que em transmissões pela TV, com alcance de público ainda muito maior.

— O recorde mundial de uma live no Youtube é menos da metade da audiência de jogo de menor expressão em uma quarta a noite na TV Aberta. Não é demérito nenhum, é apenas um fato que os patrocinadores levam em conta — afirma Gustavo Herbetta, fundadorda agência de marketing esportivo Lmid.

Fonte: O Globo Online