Futebol

Bebeto e Romário: a dupla

Por Rafael Martins

Há uma certa dupla de ataque que, com a camisa da Seleção Brasileira principal, colecionou somente bons resultados. Quando um esteve sem o outro, nem sempre o time canarinho se deu bem, mas, nas ocasiões em que os técnicos os puseram juntos em campo, não houve uma derrota sequer. Esse fantástico par ajudou o Brasil a ganhar títulos importantes e marcou muitos gols.

A descrição acima se aplicaria perfeitamente ao colossal duo Pelé-Garrincha. De fato, nas 40 partidas em que o Brasil contou com seus mais representativos craques, a equipe levantou taças, fez gols em abundância e permaneceu invicta. Entretanto, não é dessa dupla que estamos falando. Referimo-nos a outra, bem mais recente, que teve papel fundamental na Copa América de 1989 e na Copa do Mundo de 1994.

Bebeto e Romário: dois craques de personalidades bem diferentes, a ponto de um ter ficado conhecido, em certo momento da carreira, como ‘chorão’ e, o outro, como ‘marrento’. Nos gramados, porém, o estilo do carioca baixinho e folgado era muito familiar ao do baiano franzino e tímido. E vice-versa. O futebol os tomou como primos. Primos como os números das camisas que envergavam. O 7 e o 11, aliás, abriam uma exceção quando estavam nas costas de Bebeto e Romário, tornando-se, por 90 minutos, plenamente divisíveis. Com tanto talento compartilhado, ficava difícil para os adversários.

Nas últimas décadas, nenhuma outra dupla de ataque brasileira apresentou tanta sintonia. Nenhuma foi tão benéfica à Seleção. E pensar que, no começo, o que havia era uma grande rivalidade – em meados dos anos 80, Zico e Roberto Dinamite, ainda em atividade, passavam o cetro do futebol carioca para os ídolos mais jovens, que durante alguns anos disputaram acirradamente a artilharia do Campeonato Carioca. Bebeto e Romário eram a nova cara de Flamengo e Vasco. Ao contrário dos antecessores, eles não perpetuariam o vínculo com o clube em que despontaram. Ambos jogaram (e fizeram história) no outro lado, ambos passaram por um terceiro clube do Rio (Fluminense, no caso de Romário, e Botafogo, no de Bebeto).

Ambos fizeram sucesso na Espanha, onde foram artilheiros na década de 90. Mas foi a Seleção o ambiente em que puderam atuar juntos, rendendo o máximo que podiam. Máximo? Sim, máximo. Romário teve outros grandes parceiros, mas nenhum tão capaz de achá-lo entre os beques quanto Bebeto, que, por sua vez, também desfrutou da companhia de eficientes colegas, mas nenhum a quem pudesse dizer, como disse a Romário após certo gol na Copa de 1994, “Eu te amo”.

Bebeto encerrou a carreira mais tarde do que deveria, depois de tentar uma melancólica reedição da velha dupla, no Vasco de 2001. Romário, que àquela altura já era um veterano, encontra-se hoje tomado por um arroubo de vaidade que mancha, por tabela, a já combalida imagem do Vasco sob a gestão de Eurico Miranda. A forçada contagem regressiva para o milésimo gol é o lúgubre desfecho de uma carreira que, naquele mesmo palco – o Maracanã – teve atos magníficos, como as vitórias sobre o Uruguai em 1989 e 1993. Em ambas, Bebeto também esteve em cartaz.

O número 23 - Em 23 partidas oficiais da Seleção principal, a dupla Bebeto-Romário figurou no setor ofensivo. Os resultados colhidos foram 17 vitórias e 6 empates, nos quais o time fez um total de 48 gols, tendo sofrido 11. Dos 48 gols marcados, 33 entram na conta da bem-sucedida parceria –- são 18 de Romário e 15 de Bebeto.

Pela Seleção olímpica, eles ficaram lado a lado em 10 ocasiões, todas em 1988. Em oito delas, Bebeto entrou no decorrer do jogo, substituindo, por exemplo, Edmar (Guarani, Corinthians e Atlético-MG) e Careca (não o mais famoso, e sim o que apareceu no Cruzeiro). Em apenas um desses compromissos, o Brasil saiu derrotado: a final da Olimpíada de Seul, frente à União Soviética, mas vale lembrar que houve empate no tempo normal e que Bebeto foi sacado antes da prorrogação.

Não entraram em nossa lista de jogos pela Seleção principal as três oportunidades em que Bebeto substituiu Romário (Brasil 1x0 Holanda, em 1992; Brasil 2x0 França, em 1992; Brasil 2x1 Alemanha, em 1998), nem a solitária vez em que o oposto ocorreu (Brasil 3x1 Alemanha, em 1992). Não faria sentido computar essas quatro partidas, pois, nelas, um não esteve acompanhado do outro. Também ficou fora do nosso rol o amistoso não-oficial Combinado da Úmbria 1x0 Brasil, realizado às vésperas da Copa de 1990, já que não passou de um treino televisionado (disputado, inclusive, sem o uniforme oficial), tal como os que antecederam a Copa de 2006. Só para registrar: tanto Bebeto quanto Romário entraram nessa ‘pelada’ aos 68 minutos. O gol do time da Úmbria, marcado por um tal de Artistico, deu-se aos 5 minutos.

É importante observar que, na relação dos 23 jogos, há muitos válidos por competições de renome, como a Copa do Mundo e a Copa América. O leitor mais crítico há de ficar chocado com a inclusão da Copa América entre as competições relevantes, mas a de 1989 não foi fajuta como as mais recentes, disputadas com times B ou C. Basta dizer que a Argentina trouxe Maradona. Dos 23 embates da lista, seis são de Copa América, sete de Copa do Mundo e três de eliminatórias, ou seja, 70% dos duelos foram realmente importantes, dado que ajuda a realçar a longa invencibilidade, por si só bastante admirável.

Trajetória na Seleção - Das 23 partidas em que Bebeto e Romário defenderam, juntos, o selecionado tupiniquim, 10 aconteceram em 1989, e mais 10 em 1994. Isto é, o mais entrosado e eficiente par ofensivo do futebol brasileiro nas últimas décadas praticamente limitou seu serviço na Seleção a dois iluminados anos, com um hiato de quase cinco entre eles. A que se deve isso? Em parte a Sebastião Lazaroni, que, mesmo depois das grandes exibições de Bebeto e Romário na Copa América de 1989 (título que o Brasil não conquistava desde 1949), preferiu, no Mundial da Itália, usar Muller e Careca no ataque. Vale frisar, no entanto, que Romário fraturara a perna meses antes e não se encontrava no ápice de sua forma.

Outro motivo para a longa separação foi o período de experiências da era Falcão, durante o qual a posição de centroavante chegou a ser ocupada por jogadores como Sílvio e Careca Bianchezzi. O processo de renovação não foi de todo infrutífero - Mauro Silva e Cafu comprovam isso –, mas teria sido bem melhor ver Pelé, no amistoso em comemoração aos seus 50 anos, tabelar com Bebeto e Romário, e não reclamar do fominha e obscuro Rinaldo.

Além das duas razões já expostas, há uma terceira: a rebeldia e o egocentrismo de Romário, que tivera entreveros com Lazaroni e voltou a tê-los com Parreira. Quando soube que seria reserva num amistoso contra a Alemanha, em dezembro de 1992, no Beira-Rio, Romário, à época jogador do PSV, não tomou nenhum cuidado para disfarçar a insatisfação. A atitude foi considerada um gesto de insubordinação, e o artilheiro só tornaria a vestir a ‘amarelinha’ em setembro de 1993.

Abaixo, outros detalhes acerca da história da dupla na Seleção Brasileira, acompanhados da lista dos 23 jogos.

Parte I - De prata olímpica a mania nacional - Em 1987, Romário estreou na seleção principal. No mesmo ano, Bebeto participou do Pré-Olímpico, no qual o Brasil teve alguns percalços, mas terminou campeão. Nesse torneio, mais precisamente no intervalo da derrota para a Colômbia, o técnico Carlos Alberto Silva teria dado um tapa no rosto de Bebeto. Nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, uma seleção de jovens jogadores alcançou a medalha de prata, batendo a Alemanha de Klinsmann na semifinal e perdendo a decisão diante da União Soviética, na prorrogação. Romário foi o goleador máximo do certame, ao passo que Bebeto só convenceu o técncio de que podia ser titular nas quartas-de-final, quando entrou no lugar de Careca (o ‘impostor’) e fez o gol da vitória sobre a Iugoslávia.

Em 1989, já com Ricardo Teixeira no comando da CBF e Eurico Miranda tomando conta da Seleção, Sebastião Lazaroni foi chamado para dirigir o escrete nacional, embora seu currículo não fizesse jus ao cargo – a relação estreita com Eurico garantiu o emprego. Lazaroni conhecia bem Bebeto (com quem havia trabalhado no Flamengo, em 1986) e Romário (seu pupilo no Vasco, em 1987/8). Depois de uma malfadada excursão à Europa, na qual viu, do banco, o Brasil perder para Suécia, Dinamarca (4x0!) e Suíça, o treinador desistiu de fazer testes e convocou os velhos conhecidos para sua primeira competição oficial à frente da seleção: a Copa América, cuja sede seria o Brasil.

Quando escalou Bebeto e Romário no jogo de estréia, contra a Venezuela, na Fonte Nova, Lazaroni não sabia que estava plantando a primeira muda do tetra. Sabia apenas que estava criando um problema para si próprio: o atacante Charles, do Bahia, peça utilizada no fracassado tour europeu, tinha sido cortado do grupo que jogaria a Copa América, medida que despertou a ira dos torcedores baianos. A Seleção foi hostilizada e vaiada contra a Venezuela. O gol da Vinotinto, o primeiro de sua história diante do Brasil, fez a vitória por 3 a 1 parecer uma derrota vexaminosa. Bebeto anotou um dos gols brasileiros, seu primeiro pela Seleção estando ao lado de Romário.

Seguiu-se um empate sem gols contra o Peru, também pródigo em xingamentos e apupos advindos da arquibancada. No terceiro jogo da campanha, contra a Colômbia, outro 0 a 0, dessa vez com Renato e Baltazar no ataque. Bebeto e Romário recuperariam a titularidade no último jogo da primeira fase, no Estádio do Arruda. A mudança de ares foi extremamente salutar para o time, que venceu bem (2 a 0), com dois gols de Bebeto. Daí para frente, tudo mudou.

No quadrangular final, o Maracanã assistiu a três ótimas apresentações do Brasil, e a dupla Bebeto-Romário virou manchete. Nos programas esportivos do rádio ou da TV, só se falava nesse novo casamento com comunhão universal de estilos. Nas ruas, nas escolas e nos playgrounds, os garotos jogavam bola imitando os craques da moda. Um ano antes, Bebeto e Romário tinham travado uma guerra pelo título do Estadual (vencida por Romário) e pela artilharia do mesmo campeonato (vencida por Bebeto: 17 a 16). Trocaram farpas e provocações via imprensa. Uma vez unidos em prol da Seleção, mostraram uma afinidade tão grande que, rapidamente, surgiu quem tentasse enxergar uma amizade fora dos gramados.

A imagem era ótima e vendia muito bem: Bebeto e Romário eram jovens, talentosíssimos e... camaradas! O programa Globo Esporte não tardou a explorá-la, convidando os dois e suas respectivas esposas para um passeio em forma de matéria, entre um jogo e outro daquela Copa América. Mas a intimidade acabou ficando mesmo circunscrita às quatro linhas. Bebeto nunca chegaria a ser amigo de Romário.

O baiano foi o artilheiro da competição, com seis gols. O mais bonito e circense deles, conseqüência de um voleio incapturável, foi assinalado no confronto com a Argentina. Silas cruzou uma bola rasteira, que Romário apenas aparou, intuindo que algo acrobático sairia da cartola de Bebeto. O dardo explosivo fulminou a rede de Pumpido. Romário faria o segundo gol da partida, o primeiro de seus três na competição. O último e mais importante, de cabeça contra o Uruguai, exatos 49 anos após o Maracanazo, contou com o auxílio de Bebeto, que tabelou com Mazinho antes de este executar o cruzamento.

Após a Copa América, existia a sensação de que Bebeto e Romário haviam nascido um para o outro e de que nada poderia evitar um final feliz no Mundial de 1990. Mas havia Careca, que não disputara o certame sul-americano. Grande parte da crítica especializada não admitia o atacante do Napoli, principal jogador do Brasil na Copa anterior, fora do time. Lazaroni testou um ataque com Bebeto, Romário e Careca na estréia das eliminatórias, mas a equipe só deslanchou quando Careca foi substituído. Na segunda rodada, menos de um mês depois do êxito no Maracanã, Romário foi expulso numa tensa batalha em solo chileno. A suspensão deu a titularidade do jogo seguinte a Careca, que fez quatro gols no Morumbi. Foi o primeiro baque. O segundo veio quando Romário se lesionou. A Copa do Mundo já não seria do jovem dueto que havia posto a Argentina para dançar. O ‘happy end’ ficaria adiado para quatro anos depois.

Parte 2 – Da chegada do messias ao tetracampeonato - “Os uruguaios que se cuidem”, estampava o jornal O Globo em 8 de setembro de 1993. Era uma alusão à chegada de Romário ao Rio, onde o Brasil enfrentaria o Uruguai. “Sei que sou bom e estou em boa fase”, declarou o astro, que vinha arrebentando em seu início no Barcelona. Os nove meses de ausência, causados pelo já referido caso de indisciplina em Porto Alegre, fizeram com que seu retorno à Seleção se tornasse tão cercado de expectativa quanto um parto. Os filhos nasceram no dia 19 de setembro, em pleno gramado do Maracanã. Bebeto foi o obstetra do primeiro, cruzando a bola com precisão cirúrgica. Romário cabeceou e deu à luz.

Ele retribuiria na Copa do Mundo, ajudando Bebeto a embalar seu bebê (o filho Mattheus acabara de nascer), na partida contra a Holanda. Esse gol do então atacante do Deportivo La Coruña revela o grau de consonância que a dupla havia atingido: Romário, em impedimento, despreza cinicamente um lançamento e anda em direção ao nada, como se estivesse no calçadão da praia; Bebeto nota a manha mais rápido que a defesa holandesa, dá o bote e arranca com a bola, fazendo 2 a 0. Se tivesse sido combinado, não teria saído tão perfeito. Foi uma armadilha preparada à base de telepatia.

Alguns minutos antes, no mesmo jogo, o duo havia construído o mais belo tento da equipe brasileira naquela Copa. Pelo flanco esquerdo, Bebeto olhou de esguelha para um cupido que flutuava na grande área. O passe atravessou algumas nuvens e chegou ao anjo, que flechou o canto esquerdo de De Goeij. No duelo contra os Estados Unidos, o mesmo cupido dera uma assistência a Bebeto, provocando no camisa 7 uma reação das mais amorosas.

O tetracampeonato mundial teve muito da química entre Bebeto e Romário. Guarnecida por um pétreo sistema defensivo, a dupla pôde improvisar diversas fórmulas de gol, das quais sempre constava o elemento En (entrosamento). Mas já não eram mais os garotos de 1989. Começariam, depois da Copa, a sentir o peso atômico dos anos. Juntos, só jogariam mais duas partidas pela Seleção.

Parte III - O ocaso - Brasil 2x1 África do Sul, em dezembro de 1997, foi a última partida da Seleção em que a dupla Bebeto-Romário começou jogando. Diante do México, poucos dias mais tarde, Bebeto entrou no lugar de Ronaldo para dar números finais ao respeitabilíssimo currículo da parceria no time ‘canarinho’.

Se, após a Copa dos EUA, Romário tivesse levado sua carreira um pouco mais a sério, talvez a parceria tivesse durado mais, dada a natural simpatia de Zagallo por Bebeto. Talvez Romário tivesse até alcançado a proximidade do milésimo gol ainda na casa dos 30. De qualquer forma, o melhor jogador do mundo, segundo a Fifa, já era outro, também brasileiro – Ronaldo Nazário – e teria sido difícil para Bebeto ou Romário conseguir barrá-lo.

Embora Ronaldo tenha, em 2002, formado um ótimo trio com seu homônimo gaúcho e Rivaldo, não resta dúvida de que Bebeto e Romário compreendiam um ao outro de forma menos tática e mais instintiva, menos programada e mais espontânea. Completavam-se como goiabada e queijo, Lennon e McCartney, sol e topless.

Por que dava tão certo?

Poucos atacantes conseguem bater de primeira com a precisão de Bebeto e Romário. Não por acaso, uma das marcas registradas de Bebeto era o voleio. Romário sempre foi mestre no bate-pronto e nas conclusões minimalistas. Tendo sido ambos tão afeitos à arte de pegar na bola do jeito que ela vinha, naturalmente sabiam distinguir a assistência bem executada daquela que chegava no tempo errado e fora de esquadro. Como, além do grande poder de definição, Bebeto e Romário dispunham de um passe apurado, um podia achar o outro como se estivesse achando a si próprio – o toque de Bebeto saía do jeito que ele gostaria de receber, o mesmo valendo para Romário.

Bebeto era o que mais enveredava pelos flancos, esgarçando a marcação, a fim de que Romário ficasse um pouco menos vigiado pelo meio. Mas não funcionava como na época do ponta fixo cruzando para o centroavante fixo – deslocamentos (sim, Romário se deslocava) inteligentes aconteciam, favorecidos que eram pelo ótimo senso de colocação e pela visão de jogo dos dois.

Acima de qualquer explicação técnica ou tática para o sucesso da dupla, está a aposta na existência do que se poderia chamar de ‘bola-metade’. Muitos craques passam a vida sem encontrá-la, mas Bebeto e Romário tiveram essa sorte. E foram felizes para sempre.

Fonte: Trivela