Vasco inaugura hoje exposição sobre a Resposta Histórica
Fundado em 1898 e com departamento de futebol inaugurado em 1915, com a fusão com o Luzitania, o Vasco não demorou a trilhar o caminho das grandes conquistas. Menos de dez anos depois da entrada no esporte, o clube viveu um dos seus momentos mais simbólicos, que hoje completa 100 anos. A "Resposta Histórica", documento em que o cruz-maltino rejeitava a exclusão de 12 jogadores negros e de origem e condições humildes da sua equipe para que pudesse disputar o campeonato (que seria hoje o estadual) do Rio de 1924, virou um marco de orgulho e um ideal para o clube e seus torcedores.
Em 1923, depois de sete anos montando seu futebol, disputando as divisões e ligas inferiores e de acesso do futebol do Rio, o Vasco fez sua estreia na elite, pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT). Acabou campeão carioca com campanha de 11 vitórias, dois empates e uma derrota. No time, estavam jogadores negros, operários, de origem humilde e vindo das condições mais variadas. Um espaço raro num momento em que o futebol ainda era um esporte dominado pela elite da época.
Tudo isso acontecia em um contexto de racismo aberto e explícito mais preconceito social no país. A Lei Áurea, que decretou o fim da escravidão no Brasil, fora promulgada 35 anos antes, por exemplo. No estatuto da LMDT de 1917, eram vetados atletas com "profissões humilhantes que permitam recebimento de gorjetas", analfabetos e aqueles que estivessem "abaixo do nível moral exigido" segundo o Conselho Superior, "tendo posição, profissão ou emprego abaixo do nível de moral exigido pelo amadorismo (do esporte)".
Nesse meio, aquele time, que tinha Nelson, Mingote, Leitão, Arthur, Bolão, Nicolino, Paschoal, Torterolli, Arlindo, Cecy, Negrito, Claudio, Adão, Nolasco, Pires e Russo, comandados pelo técnico uruguaio Ramón Platero, ficou conhecido como os "Camisas Negras". Seria o pivô da "Resposta Histórica" no ano seguinte.
Em 1924, América, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Bangu fundam a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA) e se preparam para organizar um novo campeonato. Convidado a se filiar, o Vasco fez a solicitação e inscreveu seus atletas junto à comissão organizadora da instituição, que pedia locais de trabalho atuais e anteriores entre as informações. O retorno ao pedido do Vasco veio com a condição da exclusão de 12 atletas do seu elenco, entre negros, operários e aqueles de origem social e histórico profissional humilde. Bolão, Leitão, Brilhante, Arthur, Cecy, Negrito e Russinho foram os sete nomes do elenco principal (outros cinco do segundo quadro completavam a lista) excluídos.
Segundo o Centro de Memória do Vasco, o então presidente José Augusto Prestes chegou a tentar uma resolução com a AMEA sem a exclusão dos atletas. Sem sucesso. No dia 7 de abril de 2024, redigiria o documento datilografado: o ofício 261, uma resposta a Arnaldo Guinle, presidente da AMEA, vetando a exclusão dos atletas e abrindo mão da filiação — e da disputa do campeonato.
Leia o trecho final da "Resposta Histórica", reproduzida na íntegra no fim desta matéria:
“Quanto à condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever acceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consocios, investigação levada a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa. [...] seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias
Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da A.M.E.A.”
Depois da emissão da resposta, a associação chega a responder afirmando que esperava que o Vasco construísse equipes “genuinamente portuguesas”, chamada de “nobre raça secular”.
Naquele mesmo ano, o Conselho Deliberativo do clube já havia aprovado um empréstimo para a construção do estádio de São Januário, uma ausência de campo que também fez parte do contexto de dificuldades impostas ao cruz-maltino. Competitivamente, o Vasco voltaria à Liga Metropolitana, que havia se tornado um campeonato secundário. E construiria naquele ato um marco na luta antirracista e contra o preconceito no futebol, relembrada até hoje, do campo às músicas das arquibancadas.
Vasco inaugura exposição
No centenário da “Resposta Histórica”, o Vasco preparou uma série de ações comemorativas, dentro e fora do clube. A primeira delas foi o lançamento de uma linha de camisetas em parceria com a marca Chico Rei. Os quatro modelos foram lançados na última terça-feira e terão a arrecadação voltada para o Centro de Memória do clube.
O próprio Centro de Memória do Vasco lançou também um acervo digital com mais de 30 mil páginas (documentos e publicações internos e externos) e seis mil fotos na última sexta-feira, incluindo imagens destas primeiras décadas de existência do clube. Clique aqui para acessar o acervo .
A última e principal ação acontece hoje, quando o clube inaugura a exposição “Centenário da Resposta Histórica: Coragem para Lutar”. Após a cerimônia para convidados, a exposição ficará no Espaço Experiência do clube, em São Januário, que funciona de terça a domingo. Nela, uma versão em papel do documento poderá ser vista pelos visitantes, bem como outros documentos e atas de reuniões da época.
Leia a íntegra da 'Resposta Histórica' do Vasco:
Rio de Janeiro, 7 de Abril de 1924.
Officio No 261
Exmo. Snr. Dr. Arnaldo Guinle,
D. Presidente da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos.
As resoluções divulgadas hoje pela Imprensa, tomadas em reunião de hontem pelos altos poderes da Associação a que V. Exa. tão dignamente preside, collocam o Club de Regatas Vasco da Gama numa tal situação de inferioridade, que absolutamente não pode ser justificada, nem pelas defficiencias do nosso campo, nem pela simplicidade da nossa séde, nem pela condição modesta de grande numero dos nossos associados.
Os previlegios concedidos aos cinco clubs fundadores da A.M.E.A., e a forma porque será exercido o direito de discussão a voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.
Quanto á condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever acceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consocios, investigação levada a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.
Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.
São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.
Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da A.M.E.A.
Queira V. Exa. acceitar os protestos da maior consideração estima de quem tem a honra de subscrever.
De V. Exa. Atto Vnr., Obrigado.
José Augusto Prestes
Presidente
Fonte: O Globo
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