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100 anos de Resposta Histórica: Como o movimento transformou o futebol

Em pesquisa publicada em 2023, o Observatório da Discriminação Racial no Futebol ouviu 508 atletas atletas das séries A e B masculina e feminina, mais profissionais de arbitragem. Destes, 41% se declaram negros. Um espaço completamente diferente para uma população que, mesmo campeã, foi vista como indesejada há um século.

Sobrinho-bisneto de Albanito Leitão, o zagueiro Leitão (foto, no topo), um dos jogadores alvos da AMEA, o professor de biologia Kaio Galvão, de 34 anos, descobriu há alguns anos que um tio-bisavô da família materna foi figura de tamanha importância para o futebol. Vascaíno, ele fazia um trabalho de escola quando foi alertado pela avó que o “tio Nito” estava na foto do time de 1923, que ficou conhecido como os “Camisas Negras”.

—Minha avó falava que era muito famoso. As pessoas o paravam para cumprimentar, para falar com ele como se fosse uma espécie de celebridade. Mesmo sem ter câmeras (de vídeo), sabiam muito quem era por conta de rádio, do “dissse me disse” de ser jogador do Vasco. Mas ele já morreu sem essa fama, trabalhando no posto de gasolina do meu bisavô.

Leitão veio do Bangu. Analfabeto, passou a trabalhar no comércio e aprendeu a ler com o bibliotecário do clube para fazer sua inscrição, mas chegou a ter seu registro cassado em 1922, antes mesmo dos eventos de 1924.

Kaio também é sobrinho, por parte de pai, do lateral Galvão, campeão carioca de 1982 pelo cruz-maltino. Um representante da família que seis décadas depois de Leitão, “herdou” um futebol muito transformado na esteira dos Camisas Negras, que mudou a história da família — além de Galvão, o pai e irmãos tiveram passagens pelo cruz-maltino no campo e no futebol de salão.

— Se não fosse o futebol, eu não vejo o que que eles poderiam ter feito. Meu pai ganhou carro, meu tio Galvão comprou carro e casa. Essa possibilidade de migrar de uma classe de pobreza para uma classe média tem toda a relação com a “Resposta Histórica”, com a atitude do Vasco — conta o professor de biologia.

—Esse movimento de comprar briga e falar que os jogadores seriam mantidos no elenco, possibilitou, hoje em dia uma série de coisas, que eu facilmente identifico, como uma criança negra, como eu, sonhar em ser jogador de futebol. Olhar para o Vinicius Júnior, para o Endrick, e falar “eu quero ser ele”. Romário, Ronaldo e tantos outros que só existem porque houve esse movimento. O futebol salvou a vida da minha família, não tenho a menor dúvida disso.

Kaio, na figura de Leitão, foi um dos homenageados com a Honraria Pai Santana, criada pelo Vasco para premiar figuras da luta contra o racismo, no centenário dos Camisas Negras no ano passado. O mais recente condecorado pela premiação foi um atleta formado pelo Vasco: o meia Lucas Eduardo (foto, centro), que se posicionou de forma forte contra ataques racistas que sofreu durante um jogo da Copinha.

O atleta negro e a mídia

Nos ecos da “Resposta Histórica”, a profissionalização do futebol que viria entre os anos 1930 e 1940, integrou os atletas pretos e facilitou o surgimento de superestrelas como Leônidas da Silva, o Diamante Negro. De Pelé, Garrincha e Jairzinho a Ronaldinho e Romário, o futebol brasileiro enfileira ídolos pretos. Socialmente, chega a ser lugar comum citar o papel transformador de vidas da modalidade.

Mas o racismo, direto ou estrutural, segue como principal obstáculo de luta. Na pesquisa do Observatório, também 41% dos entrevistados já declararam ter sido vítimas de alguma forma de racismo.

Hoje, a seleção brasileira tem dois grandes ícones propulsores de mudanças: Vini Jr., vítima de cruéis e incessantes ataques racistas na Espanha, aos quais resiste se posicionando como grande nome dessa luta, reconhecido globalmente; e Endrick, superestrela de 17 anos cobiçada por marcas ao redor do mundo, consciente de sua posição. Em julho, os dois serão companheiros de Real Madrid.

— Não vou me abalar com isso (racismo), vou seguir de cabeça erguida. Se fizerem, vão ficar bravos porque eu não vou me irritar, vou ficar tranquilo — disse Endrick em novembro.

O protagonismo da dupla se observa, entre outros fatores, pela força midiática. A publicidade esportiva, predominada por brancos, tem virado mais um espaço de mudança. A jornalista Mia Lopes, CEO da Afro Esporte, uma sportstech de soluções digitais para atletas e profissionais negros, que faz pontes entre atletas e marcas, lembra que Lêonidas da Silva vendeu os direitos de seu epíteto a uma marca de chocolates por um valor hoje equivalente a R$ 3 mil depois do sucesso na Copa de 1938.

— De 1938 vamos para vamos para 2024, no qual Endrick, com autoestima, um outro momento de vida, uma outra consciência de sua marca pessoal, escolhe com qual marca quer fechar. Tem uma elegância, uma consciência do poder. Eu imagino os filhos e netos desse potencial, com outra consciência racial, de gênero. Uma outra camada de consciência.

Gargalos ainda existem

Mia lembra nomes como Aranha e Grafite e vê com otimismo as transformações midiáticas que perpassam os movimentos de Vini Jr. e das marcas associadas a ele.

— Está todo mundo de olho, nada mais passa despercebido. A gente precisa reconhecer que hoje nós temos um movimento negro utilizando dos veículos de comunicação com muita força. As proporções que as coisas estão tomando é nova. O poder disso (é grande) para quem chega no futebol, para quem está em volta. Os movimentos do Vini vêm num lugar de sacudir não apenas as pessoas pretas. Na Afro Esporte, quando fazemos treinamentos, não podemos desassociar empoderamento financeiro, empreendedorismo afro e presença digital de letramento racial.

Criador e diretor-executivo do Observatório, Marcelo Carvalho observa que o debate racial estrutural sobre o futebol, antes silenciado, cresceu. Mas os espaços ainda começam a ser ocupados:

— Temos negros e negras denunciando, se posicionando e ocupando espaço para falar sobre racismo. Não só o que sofrem, falar de estrutura e sociedade — diz ele, que ressalta os gargalos — Nós não temos negros como treinadores, presidentes de clubes e federações, temos uma exceção na CBF (Ednaldo Rodrigues, negro e nordestino). O tribunal de justiça que julga um caso de racismo é extremamente branco e composto por homens. Essa estrutura do futebol começa a ser discutida agora. Estamos deixando o futebol do “pão e circo” para discutir a importância que ele tem na sociedade, a disputa de poder.

Fonte: Agência O Globo